“Quando estás a ler um livro, em que espaço
é que estás?”
No
quarteirão dos Duques de Bragança há umas portas aparentemente fechadas que dão
para um mundo de salas e armazéns, onde se trabalha arquitectura para grandes e
pequenas obras. Numa dessas salas fui encontrar o Pedro de mangas arregaçadas a
trabalhar numa maqueta. Desde as lajes em betão à descrição dos materiais
locais, os olhos do Pedro brilharam com as respostas às minhas perguntas de
curioso ou como lhe gosto de chamar: de tipo que queria ser arquitecto, mas que
não teve tomates para ir por aí. Ainda bem, penso agora, que teria sido
daqueles arquitectos que o Pedro não é, tão conceptual tão conceptual que acho
que nem das maquetas passaria.
Mas quem é este tipo?
O
Pedro Pinto Correia é um arquitecto de 33 anos, mais conhecido pelo seu projeto
Cuida do Teu Bairro. Viveu na Portela
de Sacavém até aos 24 anos, trabalhou em Madrid e decidiu ir morar para o
Intendente. Agora, trabalha no seu atelier em nome pessoal, onde está a
terminar uma moradia unifamiliar para Sabrosa, Trás-os-montes.
Pergunta do artista Herberto Smith
Acabado
de gravar em Campo de Ourique, o fotógrafo Herberto Smith deixa-me uma pergunta
que apenas duas horas depois, estava a fazer ao Pedro. O que é que te move? “Boa questão, são as minhas inquietudes. Tu
tens determinado tipo de crenças, do tipo de querer e não das religiosas, e
isso para mim enquanto não alcançar esses objectivos, mantêm-me inquieto. Por
exemplo, surgiu-me a inquietude de Cuidar
do Meu Bairro, e fiz o projecto, como moro no Intendente comecei por aí.
Esse foi um projecto que surgiu de uma dessas inquietudes, de achar que algo
estava mal, e como arquitecto também acho que tenho esse papel. Na altura
tinha-me despedido em 2010, e estava sem fazer nada e com tempo para pensar
noutras coisas e noutras inquietudes. Mas o que me move são as minhas
preocupações pessoais e sociais.
A Portela
Um
arquitecto que passou a infância e juventude na Portela, tem de opinar sobre um
dos projectos urbanísticos mais icónicos do país. O que achas da Portela? “Aquilo é um protótipo, uma experiência
urbano-sociológica, é um plano do movimento moderno. As pessoas encontram-se
todas num centro e é aí que toda a vida da Portela se gera, o café, o encontro
com os amigos, ir ao pão, fazer desporto, que é todo ali no centro, os
dentistas, etc. A vida daquele bairro, para além do jogar à bola com os amigos
nos pátios que todos os prédios têm, é toda feita no centro comercial da
Portela. Tenho colegas que detestam a Portela, porque vivem noutras zonas da
cidade onde se geram mais encontros, sais à rua e andas mil metros e encontram
mil pessoas antes de comprarem o pão. Ali não, ali andas quinhentos metros e
não encontras ninguém.”
A casa do Pedro
Mas
o Pedro não vive na Portela, vive numa zona que quando foi para lá estava
apenas a começar a sua renovação. O Pedro vive no Intendente. Como é a casa onde vives? “É num prédio
reabilitado, tudo antigo mas que mantém a traça original. Foi um bom
investimento, não é apenas uma reabilitação de fachadismo. Eu vim de um sítio
um pouco ausente de Lisboa, a Portela é quase autónoma, na altura até tinha
cinemas, fazia toda a minha vida ali e sentia a frustração de nunca estar fora
de lá. Só na faculdade é que fui para Lisboa, e depois fui estudar para Madrid
e vivi mesmo no centro, numa rua atrás da Plaza Mayor e adorei andar a pé, entrar
no metro e estar ao alcance de tudo, sem ter de pegar no carro ou autocarro, ou
até estar dependente de alguém para uma boleia. Ali no Intendente a casa está
no centro e posso ir a pé ou de lambreta para o trabalho, mas a casa não deixa
de ser nova, com muitas coisas de outras casas modernas.”
A definição
Será
que a arquitectura é apenas o desenho artístico de um determinado espaço? Qual é a definição de arquitectura para ti?
“É uma palavra que abrange muita coisa do espaço, para mim, é a ciência do
espaço. Tens mil coisas com que te preocupar no espaço, não é só a parede, o
ferro, a porta tem bandeira ou não, tem almofada ou não. Tens esses pormenores,
mas tens também de pensar que tipo de actividade existe nesse espaço, como é
que se desenrola a actividade no espaço. Não sou um seguidor de a forma serve a
função mas sim seguidor de a forma tem de obedecer a parâmetros para que a
função se realize melhor. Quando estagiei com o André Jacques, curador da
Trienal de Arquitectura de Lisboa, logo no segundo ou terceiro dia ele fez-me a
pergunta sobre o que eu entendia por espaço, e eu comecei a falar de espaço
interior e espaço exterior, então ele perguntou: e quando estás a ler um livro
em que espaço é que estás? É uma pergunta que me tem perseguido, e sempre que
começo um projecto penso sempre nisso. Apesar de haver coisas que já estão
pré-formatadas pela função, essa questão torna tudo muito mais livre a nível
conceptual.”
O cliente
Num
briefing para um projecto de arquitectura, pedem-se muitas coisas que cumpram a
vontade do cliente. Mas é comum
dizerem-te o que esperam do espaço, do ambiente? “Nós quando fazemos um
concurso, temos um programa e temos algumas directrizes, sendo que a maior de
todas é o orçamento, mas dizem-nos sempre que os espaços têm de ter uma boa
relação com o jardim, que o refeitório tem de ter uma saída para o exterior para
os fumadores, essas pequenas premissas para definires o espaço. Mas definições
que envolvam o tipo de vida que se pretende num espaço, é raro. Existem
briefings de arquitectura psicológica, ou o livro da arquitectura da
felicidade, do Alain de Botton.
A casa portuguesa
Mas
falemos daquilo que existe no território português, para além dos monumentos e
edifícios icónicos, os portugueses são originais na forma como em diferentes
regiões, exploram materiais e formas adaptadas ao clima ou ao bolso. Como defines a arquitectura popular
portuguesa? “É uma arquitectura de origem pobre, em que se recorre aos
materiais mais próximos da zona, por razões óbvias. Mas há sempre diferenças
entre regiões, em Vila Real, onde estamos agora a trabalhar, há muito xisto e
granito. Esteticamente eram fruto de uma necessidade. Esta casa por exemplo,
pode explicar toda a arquitectura popular portuguesa. Era uma casa de uma
família humilde com três filhos. Inicialmente era um volume de seis por onze
metros, divididos por dois andares, por cima os quartos e por baixo os animais.
Os filhos nasceram e estendeu-se a casa, fez-se a pocilga e a cozinha que se
mudou do volume principal para um anexo. É aqui que está a arquitectura
tradicional portuguesa, são acrescentos de volumes pré-existentes, com recurso
aos materiais da região. Um estudo que fizemos sobre os telhados em
Trás-os-montes mostra isso, há sempre uma continuidade dos telhados. Temos a
casa mãe mais alta e depois as águas desciam por cima dos anexos. Nos bairros
clandestinos dos subúrbios de Lisboa, o conceito mantém-se, os materiais mais
próximos e baratos, até sobras de outras urbanizações e casas iniciais que
depois também vão crescendo.” Mas achas
que daqui a duzentos anos esses bairros populares poderão tornar-se estéticos?
O Bairro Alto também foi uma urbanização popular no seu tempo e sem objectivos
estéticos, poderá acontecer o mesmo ao bairro de Casal de Cambra? “Acho que
são casos diferentes, o Bairro Alto teve intervenção pombalina e havia uma
tradição de construção, todos tinham as cantarias em Lioz, as portas eram
feitas à medida de quem lá vivia, se calhar havia um regulamento real. Mas acho
que esses bairros nunca serão esteticamente interessantes, porque uma coisa era
a capital do reino com um plano urbano, que inicialmente podia não haver, mas
depois com o românico, o gótico, ou o manuelino. E havia a preocupação em
servir os comportamentos humanos daquela época, Casal de Cambra não tem uma
praça onde as pessoas se possam juntar, por exemplo.” Então achas que sem arquitectos, todos os bairros e cidades seriam como
o Casal de Cambra, com as suas necessidades mas sem planos? Para que serve o
arquitecto hoje? “Há uma história que vem desde a Grécia e o Império Persa,
depois a cidade romana que era uma cidade planeada, a idade média e a cegueira
da fé lançou o caos urbanístico. A função da arquitectura começou pela
organização da cidade, e o desenho da casa baseava-se na estética vigente. O
crescimento desmesurado das cidades de cintura de Lisboa deveu-se ao aumento de
fogos para as câmaras terem mais IMI cobrado, agora há o problema económico que
combate o ciclo de diminuição de cidade em que estamos neste momento. A falta
de vida da cidade de Lisboa foi, assim, até à algum tempo um problema
político.”
Cuida do teu bairro
Este
projecto foi o que me fez conhecer o Pedro. Iniciado em 2010, e sempre feito em
parceria com as Juntas de Freguesia, consiste em sinais autocolantes colocados
junto a zonas com patologias urbanas, lixo ou comportamentos anti-sociais, que
interviu em vários bairros lisboetas. Por
onde já andou o Cuida do Teu Bairro? “Começámos na freguesia dos Anjos,
depois passámos por Santa Engrácia, Santo Estevão. Sempre trabalhámos com as
Juntas, porque é aí que se sabe o problema de cada bairro, não é na câmara que
se sabe que aquela determinada rua existe uma senhora que tem um problema de
lixo à porta. Em colaboração com as Juntas, fazíamos uma caminhada de
conhecimento e reconhecimento do bairro e levantamento das patologias
existentes. Depois, e apesar de muitas das patologias serem semelhantes,
tentámos sempre que os sinais sejam locais.” Dizes sempre nós, quem é o nós do Cuida do Teu Bairro? “A equipa
inicial era eu, a Carina Dias, a Rita Dias, o Francisco Oliveira Santos, o
Jaime Rydel. Isto foi uma ideia muito minha, daquela fase em que não tinha
projectos e tinha imenso tempo, fiz uns sinais à mão levantada e dei ao Jaime
que é designer, para ele fazer. Apresentámos a proposta ao presidente da Junta
dos Anjos que gostou logo da ideia e estendeu-nos o tapete. Na primeira edição
não ganhámos nada, mas nas seguintes conseguimos ganhar alguma coisa e dividíamos
por todos. Agora está numa fase nova que ainda é segredo, mas depois conto-te.”
Sete Luas
No
último orçamento participativo da Câmara Municipal de Lisboa, o Pedro concorreu
com um projecto muito ambicioso que ficou perto de ser aprovado. Consistia em
sete balões hélio iluminados em cada colina de Lisboa, tipo pins do google. Conta lá como era essa ideia. “A ideia
não foi muito bem comunicada para um orçamento de cento e cinquenta mil euros.
Aquilo é uma ideia de negócio, que a partir de um plano de marketing
territorial pretende juntar dinheiro para reabilitar as ruas da cidade. No
estudo que eu fiz, a minha primeira ideia de marketing territorial era como o
Padrão dos Descobrimentos em Belém, um sinal de Portugal naquele território, ou
os balões Nivea das praias nos anos oitenta. O Damião de Góis tem um documento
sobre as sete colinas de Lisboa, um quadro escrito da cidade, depois o
princípio do quinto império, que defendia o transladar dos impérios verso ao
ocidente, logo o português seria o quinto império. Todas as cidades imperiais
tinham sete colinas, sete montes sagrados, em Lisboa todos os setes têm sete
figuras religiosas que os identificam e sacralizam. Há todo um lado místico e
chama-se sete luas para fazermos uma alavancagem histórica disso. Já a acupuntura
urbana consiste em colocar uma agulha num local que começa a solucionar o
problema que existe à sua volta. Colocas um balão com luz própria no topo do
Campo Mártires da Pátria e consegues gerar um dinamismo social, económico e
cultural na sua envolvente. Através dessa activação sócio-cultural consegues
fixar pessoas ali e patrocínios que geram dinheiro para conseguir recuperar as
ruas e patologias dessa zona. No concurso como nos colocaram nos projectos
acima de duzentos mil euros, não ganhámos. Mas se estivéssemos na fasquia até
aos cento e cinquenta mil teríamos ganho com os quatrocentos e vinte e três
pontos que tivemos. Por isso vamos voltar a concorrer este ano.”
Pergunta para o
próximo artista a entrevistar:
“Amor
ou vaidade?”
Esta entrevista foi realizada no atelier do
Pedro, a 7 de Junho de 2014, foto de Gonçalo Moreira.
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