“Porque é que me estás a imitar?”
Investigar
e entrevistar um artista já é o que é, mas preparar-me para entrevistar dois e
acabar por conhecer três artistas no corpo de uma mesma pessoa, foi
extraordinário. Todos somos mais do que apenas a pessoa que pontualmente
encontramos. Confusos? Aceitem o desafio para uma conversa, nada ordinária, com
o realizador Gonçalo Tocha, o cantor romântico abandonado Gonçalo Gonçalves e o
outro, o que cria tudo e até se cria a si mesmo.
Mas quem é este
tipo?
O
Gonçalo Tocha, que é dos três, o que tem a biografia mais completa: tem 35 anos
e nasceu em Lisboa. Viveu a infância pelos lados de Sacavém, estudou economia no
Secundário, e língua e cultura portuguesa para estrangeiros na Faculdade de
Letras onde criou um cineclube que lhe emprestou o material para ir para a ilha
do Corvo dois anos e filmar É na terra não é na Lua. Diz-se filmador e músico,
e farta-se de ganhar prémios com os seus documentários desde o DOC Lisboa 2011.
Diz que ganhou amor aos discos e livros clássicos com o pai, de quem herdou e
foi aumentando a sua gigantesca discografia.
Pergunta do artista
Victor Hugo Pontes
O
encenador e coreógrafo Victor Hugo Pontes, deixou-me uma pergunta futurista, e
calhou ao Gonçalo responder: Como te vês
daqui a dez anos? “Em relação aos filmes nunca sei o que vou fazer, porque
estou a tentar seguir uma linha de pistas que me deixam os filmes anteriores. E
os últimos filmes deixaram-me várias pistas que eu ainda não consegui apanhar,
que têm a ver com voltar aos Açores, com os pescadores da zona de Vila Chã.
Apetece-me morder o isco daqui a uns tempos, mas ainda não sei quando vai
acontecer. Mas não imagino nada revolucionário daquilo que já estou a fazer
agora, porque esse passo já foi dado à dez anos, talvez. Se me fizesses essa
pergunta, nessa altura, poderia dizer-te, exactamente, aquilo que estou a fazer
agora. E agora o meu único caminho é ir mais longe no que já faço agora.” Não te imaginas a filmar ficção, por
exemplo? “Nem isso imagino, porque acho que não tenho capacidade suficiente
para fazer. Todos temos de encontrar a nossa maneira de existir, de existir bem
e com qualidade e a minha maneira é esta.” E
musicalmente? “Musicalmente, tudo pode acontecer, mas já acho que estou a
ir ao limite, porque já me encostei a uma margem.” E viveres noutro sítio, imaginas? “Sim, tenho essa vontade. Nos
Açores, provavelmente. No Corvo não, porque já é demasiado próximo, demasiado
casa, para eu viver lá. Preciso de um contraste para sentir a adrenalina de
lutar pelo meu sítio, e no Corvo já vivi isso. Mas pode ser noutro sítio
qualquer nos Açores.”
Na terra
Nascido
no Hospital de Santa Maria, é um filho de sacavém sem ligações às artes e à
criatividade. Não tinhas um tio que
coleccionava coisas ou isso? “Não, excepto o meu pai que tinha uma grande
biblioteca de clássicos e discografia impressionante. O meu pai era daqueles
melómanos que comprava só por curiosidade, lia numa revista e comprava, tipo o
primeiro álbum de Slayer, os primeiros álbuns de Metallica ou Sonic Youth. Por
isso quando eu tinha doze ou treze anos e me falavam sobre os Pixies ou Violent
Femmes, eu ía à discografia do meu pai e ele tinha.” Mas já sabias o que querias ser? “Eu era muito inquieto, sem saber
bem o que era, e até aos dezoito anos vivi entretido nos fascínios da minha
depressão, não olhava nem falava com ninguém, eram os meus traços de
personalidade em que não estás bem com o que és, com o sítio onde vives, com os
conflitos entre mãe e pai.” Mas foste
para a faculdade de letras? “Sim, fui para língua e literatura portuguesa.
No secundário escolhi economia por pressão familiar, e eu sabia que queria
muita coisa diferente mas não sabia o quê. Como tinha de escolher alguma coisa
e aqueles testes psicotécnicos de treta deram economia como resultado, fui para
economia, só para não me chatearem. Mas tive sorte e não atingi a média para o
curso de economia.” Ou azar… “Sorte.
Tive a sorte de não entrar, os meus pais ficaram em pânico, por isso passei um
ano em mil e um empregos de trolha. Trabalhei em todas as fábricas imaginárias,
da Schweppes aos CTT. Ganhei muito dinheiro que usei para comprar instrumentos
musicais e para ir de férias dois meses sozinho para Cabo Verde e Moçambique.
Fui à aventura e tinha de estar comigo.” E
deste-te bem contigo próprio? “Sim, maravilhosamente, mas sempre a ler os
existencialistas todos, sobretudo o Mito de Sísifo do Camus.” Mas e a música? “Eu nessa altura estava
em bandas e pensava que ía ser escritor, estava mesmo vocacionado para ai com
rascunhos de livros, e tudo, e como a espécie de Punk depressivo que fazia, não
me satisfazia totalmente, com aquele lado depressivo de tocar em pavilhões
desportivos do concelho de Loures. Eu queria seguir literatura mas enganei-me
na escolha do curso, escolhi língua e cultura portuguesa, entre parênteses
língua estrangeira, o que significava que era para ensinar português a
estrangeiros. Mas não desisti e completei essa licenciatura, desistir para quê?
É tudo igual.”
Na lua
Dentro
de uma faculdade o tempo que parece pouco ao início, é gigante para outros
interesses que os estudantes tenham, e o Gonçalo decidiu usar esse tempo e
criar um cineclube. Para que é que te
serviu a faculdade? “A faculdade serve para conheceres pessoas e teres uma
estrutura para criares coisas paralelas, no primeiro ano criei logo um
cineclube e é dai que vem a minha entrada no cinema. Criei um cineclube porque
eu já consumia cinema todos os dias na Cinemateca, e ver filmes foi o meu
segundo curso, onde ia depois das aulas. Como o meu irmão estava no Instituto
Superior Técnico, e eu dava-me muito com os amigos dele que tinham lá um
cineclube, decidi fazer um na Faculdade de Letras.” Mas isso não deu muito trabalho? “Sim, muito. Fazia ciclos de
cinema com realizadores a falarem sobre os filmes e depois criei um curso de
produção, workshops, comecei a conhecer toda a gente do cinema, o que fez com
que aquele fosse o meu verdadeiro curso, o cineclube era o meu curso. Eu
telefonava e dizia que era do cineclube da Faculdade de Letras, e todos
aceitavam e assim consegui toda a gente, e isso deu-me um grande know how de
conhecimentos. Depois a programação já não me chegava e comecei um centro de
produção na ideia das cooperativas de cinema do pós 25 de Abril, tanto que os
meus dois primeiros filmes foram feitos com material técnico deste cineclube.” Continuas a lá ir? “Desde que eu sai,
acabou. Muita gente passou por lá mas nunca ninguém quis continuar.
Foi na terra não foi na lua
O
Gonçalo realizador aparece quase do nada, como um extraterrestre e com o seu
segundo documentário ganha o Doc Lisboa em 2011. Apesar da surpresa, a forma
espiritual como filmou, durante dois anos, o dia a dia de uma ilha de seis por quatro
quilómetros, no meio do Oceano Atlântico, fazem-no iniciar uma viagem à volta aos
festivais de todo o mundo com a sua ilha filmada. Quanto tempo lá estiveste? “Foram dois anos, mas de seguida eram
períodos de um mês, mês e meio, de cada vez.” Ficou alguém por conhecer, na ilha? “Sim, ficou. Há lá muita gente
nova que eu não conheço. Aquilo é uma ilha base área, plataforma giratória de
pessoas a entrarem e a saírem, logo há muita gente que eu conheci e já não está
lá. É uma ilha completamente diferente das outras.” Mas reconhecem-te, quando lá vais? “Claro. Sempre que eu lá vou é
como voltar a casa, sempre. É uma família grande, são quatrocentas e tal pessoas numa única vila em
que todos se conhecem, e como o trabalho se prolongou e correu bem… o correr
bem para eles era, ainda antes verem o filme, já estarem orgulhosos pelo prémio
de Locarno, e eu nem tinha tido essa consciência. Como é uma sociedade
protectora, não gostam que uma pessoa de fora esteja a mostrar as tragédias. Eu
fui com o Pestana e não conhecia lá ninguém, a nossa alcunha era os “penas” por
causa da protecção da perche, e sempre que saíamos à rua estávamos a filmar,
esse era o pressuposto. Gravámos cerca de duzentas horas de filme, e cerca de
trezentas a quatrocentas horas de som. A edição durou mais dois anos, por isso
é um projecto de vida.”
A intimidade do documentário
A
sensação que dá ao ver os trabalhos do Gonçalo é que existe uma angariação de
memórias que só depois é que faz nascer uma linha narrativa clara. A intimidade
é muito grande, criando a sensação de que as pessoas desabafam para a câmara,
nem sempre verbalmente. Tens um processo
para chegar aí? “Depende de cada projecto, em relação ao É na Terra não É
na Lua e ao Torres e Cometas, filme que fiz a seguir em Guimarães com a mesma
técnica e equipa, foi a forma que encontrei para poder funcionar. Nós não
fazemos o que imaginamos fazer mas o que conseguimos e podemos fazer, temos é
de encontrar a forma técnica, o método de chegar lá. Eu não posso tentar ser o
gajo da ficção, que chega com tudo alinhavado, porque não foi assim que
aprendi, nem tem a ver comigo. Eu não aprendi a fazer na escola, aprendi no
terreno, a experimentar o material e aprendi a confiar mais nas pessoas do que
na técnica e é mais por ai que eu vou. Eu tenho de criar primeiro uma relação
humana de grande confiança e de grande intimidade com quem estou a filmar, por
isso a minha escolha não és tu porque representas um extrato da sociedade. Até
posso querer fazer isso mas sei que não vai resultar.” E a dor da edição, do processo de escolha? “A dor existe sempre no
processo de edição, porque estás a ser confrontado com os teus erros. A edição
pode ser uma forma de escamotear e esconder os teus erros. Principalmente com o
método que eu implantei, que é um método muito espontâneo, com algumas coisas
controladas ou encenadas quando já tenho uma relação de confiança com as pessoas.
Mas há coisas que não resultam como imaginaste e vais ter de tomar uma opção, ou
assumes isso como método de trabalho do teu filme, ou então tentas maquilhar
com a edição. No É na Terra e não É na Lua tentei, com o meu processo de
rodagem fosse também o processo de montagem, em que o espectador do filme está
a descobrir como é que eu fiz o filme, com dúvidas e passos atrás incluídos.” E porque é que tu também apareces nos teus filmes?
“Não é uma opção, no Balaou apareci porque estou a contar a história a uma
pessoa, que é a minha mãe. Somos três pessoas no barco, dois marinheiros e eu,
e a minha voz aparece mais do que a minha imagem, mas é quase impossível
fazeres um filme confessional na primeira pessoa, se a pessoa não aparecer. Com
o É na Terra não É na Lua, no Corvo, eu pensei que à partida eu não iria
aparecer, porque era um filme virado para as pessoas, para aquela comunidade,
mas o que aconteceu é que se criou uma ligação muito próxima, intima e humana
com aquelas pessoas, em que já nos tratávamos por tu… também éramos só duas
pessoas a filmar, não era uma equipa com dezenas de pessoas, e as pessoas que
estávamos a filmar puxavam-nos para a frente da câmara. Se nós estamos a dar
tudo o que temos sobre a nossa vida, tu também tens que dar e estar lá dentro
do filme, e não escondido atrás da câmara. É uma questão de honestidade e de
clareza sobre o que se está a passar. Sou parte do filme, porque foi assim que
eles nos viram, como Gonçalo e o Pestana.
É no mar não é no céu
A
relação entre o divino nos filmes do Gonçalo, aproximam-nos mais do mar do que
do céu, mas a ideia parece ser na mesma direcção. O horizonte sem fim e a
escala do insignificantemente humano perante o gigantescamente grande azul
parecem andar muito perto do religioso. Sentes
que os teus filmes têm uma relação especial com o divino e o espiritual?
“Acho que tenho um pouco essa consciência. Eu descobri o cinema por causa de um
filme homenagem à minha mãe, que já tinha morrido, um filme de luto e à procura
do que continua para além da fisicalidade do corpo, à procura de para onde vão
as coisas e do que as substitui. O mar significa esse lugar sagrado onde a vida
se dilui, já os gregos diziam que a vida nascia e se diluía na água. E fazeres
um filme é qualquer coisa de sagrado, é uma forma de recriares vida,
principalmente em documentário, tu não filmas uma pessoa como ela é, porque ela
é sempre várias coisas diferentes. Eu sou uma pessoa em relação a ti, mas sou
outro em relação a outra pessoa, dependendo do contexto. Uma pessoa filmada,
está a criar uma coisa única comigo, e é disso que estou à procura.” Mas há ainda quem filme a realidade?
“Já pouca gente diz isso. Os grandes mestres do documentário, pelos anos 30, já
assumiam isso, que ao fazerem um documentário estavam a alterar o que lá
estava. A grande diferença do documentário é que não estás a pagar a actores
para representar e, á partida, estás a jogar com elementos mais caóticos e
incontroláveis, mas podem haver personagens ou não, depende do que queres.” E como é que cativas as pessoas para
participarem nos documentários? “É tudo silencioso, por vezes basta olhar,
porque a química humana é o essencial. Depois é perceber que aquela pessoa resulta
cinematograficamente. Há presenças que não funcionam, e outras que basta
olhares uma vez para ficares a olhar para a maneira como a pessoa anda ou puxa
o cigarro, e isso é maravilhoso porque tens actores naturais.” Mas há também a lei do acaso, certo?
“Tens que procurar muito, por isso é que os filmes não existem se pensas muito
sobre eles. Eu quero fazer um filme sobre isto, isso não existe, o só porque me
apetece só pode resultar mal. Uma coisa que disse ao Pestana, antes de irmos
para o Corvo, sem apoios nem financiamentos, é que poderia não dar um filme mas
pelo menos estávamos a viver uma grande experiência de vida. Se não sair filme
nenhum, não é grave, porque aprendemos imenso.” Sem financiamento? “Sim, foi uma premissa muito importante, não me
candidatar a nenhum financiamento antes de saber se aquilo ía dar um filme. Mas
depois continuei sem apoio, decidi que não devia pedir financiamento porque já
que tinha feito metade sozinho, fazia o resto sozinho. Repara, as ideias não
são nada, tens um estímulo um frisson,
uma adrenalina, uma pica e foi isso que me levou ao Corvo.” Mas foi arriscado? “Sim, mas eu aí
estava com um modo de vida livre, era o momento certo, não estava comprometido
e ainda estava embalado pelo filme anterior…
Tochagonçalves ou Gonçalvestocha
Até
agora fomos falando mais do Tocha que do Gonçalves, e como sentia que conhecia
melhor o Tocha, pedi-lhe ajuda para conhecer melhor o Gonçalves. Vamos imaginar que o Tocha e o Gonçalves se
encontram numa esplanada da Costa da Caparica, de que falariam eles os dois? “Acho
que se perguntavam um ao outro, porque é me estás a imitar? Só há espaço para
um.” Mas quem copia quem? “Não sei
qual é a cópia e qual é o original, sinceramente. As pessoas muito próximas não
se dão bem, não teriam nada para dizer um ao outro. Têm todos os gostos em
comum e acho que nunca se vão encontrar, é como duas ramificações de costas
voltadas, viras de um lado e vês um, viras do outro e vês outro.” Nasceram no mesmo dia, do mesmo pai e da
mesma mãe, mas seguiram caminhos separados? “Atenção que os dois são
criação de uma mesma pessoa.” E como se
chama essa pessoa? “Não sei se tudo tem um nome, eu tive de inventar nomes
para coisas mas depois há um criador qualquer que não tem nome, Deus não tem
nome.” Tu acreditas em Deus? “Como
dizia o Serge Gainsbourg, o homem criou Deus, o contrário está por provar.
Fiquemos por aqui que não vamos provar coisas que não podemos provar.” O Gonçalves poderia entrar nos
Tochapestana? “Poderia entrar, mas não como duo, ele é um solitário
unipessoal.” Tu foste pai não há muito
tempo, teu filho conhece o Gonçalves? “O meu filho tem três pais, e a minha
mulher três maridos, o Gonçalo Tocha, o Gonçalo Gonçalves e o “Criador”.
Anos 90
Se o
Gonçalo Gonçalves habita a música dos 70, os Tochapestana a dos 80, tive de
perguntar-lhe como se vai chamar o projecto dos anos 90. Já tem nome o projecto inspirado na música dos 90? “E o que é os
anos 90? Só se for para o techno, mas os Tochapestana já têm isso tudo.
Tochapestana não é só 80, como dizemos, o passado imita-nos e o futuro está à
nossa espera. Por isso pode ser, literalmente, tudo techno, hard rock,
progressivo, e uma nova tendência que ainda vai aparecer em 2017, já pertence a
Tochapestana.
Ainda tens a boina azul?
É a
boina típica da ilha do Corvo, uso quando está frio. E como sou amante de personagens,
sempre que falava do filme, usava a boina.
Com qual dos três é que eu estive a falar
durante esta conversa?
Fica
ao teu critério, mas já tens aqui um tríptico.
Pergunta para o
próximo artista a entrevistar:
“A prática é o sentido da verdade. Concordas?”
Observação:
A entrevista
foi realizada, entre Lamb and Shrimp Currys, num restaurante no rés-do-chão do
Centro Comercial Martim Moniz. Não perguntámos o nome, entrámos no Centro e
seguimos o aroma a caril. Não nos arrependemos. Foto de "O Criador".
Publicado na DIF 108
0 comentários:
Enviar um comentário