“Eu não sei o que é a música portuguesa, e
vou morrer a não saber.”
Se
há coisa que gosto num amigo é a séria hipótese de nos mandarmos àquela parte
num momento e de nos abraçarmos no momento seguinte, é disso que gosto neste
rapaz. Desde que me meteu um pin da
MPAGDP na lapela, algures num festival de cinema da serra da estrela, que os
nossos caminhos se cruzam. Não há nada que nos obrigue a encontros sucessivos,
mas lá que acontecem, acontecem. Adoro este gajo e tinha de falar com ele numa
destas conversas, mas é óbvio que começámos às turras sobre o exotismo do hipster lisboeta que decide casar na
terrinha, ou seja eu. Tanto ele como eu somos tão apaixonados pelo que fazemos
que se for preciso andar à porrada por causa disso, andamos. Não faço a
entrevista! Então bebemos um café. Não falo! Então ouves. Uma hora depois tinha
registado uma das melhores conversas que já gravei para o Café dos Artistas.
Mas quem é este tipo?
O
Tiago Pereira tem 41 anos, é filho do músico Júlio Pereira, e passou a sua
infância pelo Bairro Alto, vendo tanto teatro e ouvindo tanta música que algures
no final da adolescência decidiu estudar video como última salvação. Desde 2011
que é o pai da Música Portuguesa a Gostar dela Própria com mais de 70.000 likes e mais de 1000 vídeos publicados.
Sim, mais de 1000 vídeos publicados só sobre música feita em Portugal. Mas não
julguem que o Tiago é um arquivista, a sua definição de realizador visualista e
a sua missão de remisturar velhinhas com ritmos urbanos levou-o ao projecto
Sampladélicos, que tem em parceria com Sílvio Rosado. Tem dois filhos e é casado
com Rosa Pomar, um outro alvo desejado para uma conversa aqui, mas isso será outra
conversa ;-)
Uma pergunta definitiva
O
Rui Pina Coelho deixou uma pergunta, que calhou ao Tiago responder: O que é que vais fazer para acabar com
isto? “Para acabar com o quê?” Acho
que ele se referia à situação actual, o que é que vais fazer para acabar com
isto? “Acho que já faço isso todos os dias… todos os dias trabalho para
acabar com isto. Acho que é um país de holofotes, toda a gente quer o seu
próprio holofote em tudo, começa logo na cultura popular, dos eruditos
populares às pessoas que fazem pesquisa, toda a gente quer o holofote virado
para si. É uma característica na cultura portuguesa, não sei se é por ser um
país pequeno, não sei.” Mas achas que é
uma característica portuguesa? “Sim… se calhar também há noutros sítios,
mas é uma característica que existe cá. As pessoas estão muito viradas para si
e isso faz com que não existam tantas cooperações, deviam haver mais redes e as
pessoas trabalharem em rede. Sobretudo dentro de nichos culturais, e a cultura
tem vários nichos e é aí que vês essa particularidade ser ainda maior. Quanto
mais pequeno é o nicho, mais as pessoas querem o seu holofote como indivíduo e
não pela causa em que estão a trabalhar, pela razão maior do que eles próprios.
E isso não é retirar mérito ao que cada um faz mas é sublimar o mérito, porque
quando estás a trabalhar para ti também estás a trabalhar para uma causa.” Achas que é mentalidade ou é uma questão
política? “Tem a ver com uma forma de viver a cultura a seguir ao 25 de
Abril. Acho que as pessoas se habituaram, sempre fomos um país de muitas
vedetas, e as vedetas são importantes. É importante que uma pessoa se possa
salientar por aquilo que faz. E isso é o que todos nós queremos, mas é preciso
perceber que aquilo que tu fazes não é só para ti, tem de ter uma causa maior.
Portanto o que é que fazes para acabar com isto? Fazes isso, o objectivo de sempre
é diminuir os fossos. Na música, há a questão da hierarquia. Obviamente que
estamos muito condicionados pela cultura da música clássica europeia…”
Os frágeis anos 80
O
Tiago passou pelos anos dourados do Bairro Alto como adolescente, e essa
influência marcou-o muito, nem que seja pela atracção dos opostos. Como era? “Nos anos 80, no Bairro Alto,
havia a noção de que o Frágil era o
centro do mundo, ou seja não havia mais nada se não aquilo. Tudo o que ali
acontecia era espectacular, dares-te com as pessoas que lá iam era
espectacular, porque aquilo era o centro do mundo. Uma espécie de núcleo
central de tudo. Pertencer àquela cena é que era importante. Agora imagina nós,
que tínhamos entre os quinze e os dezoito anos, crescermos naquilo e crescermos
cheios de preconceitos contra tudo. A música tradicional era um preconceito, o
folclore, tudo o que saísse daquilo ali era um preconceito. Mas com o avançar
das décadas, a cena mudou um bocado. Houve um concerto brutal dos PAUS no Lux, em que eles levaram os Tocándar,
vestidos de caretos e com bombos à frente do palco, e às tantas o Quim (Joaquim
Albergaria) agarra no microfone e diz: Quem diria que nós, há dez anos atrás,
alguma vez iríamos tocar com a música tradicional? E agora estamos aqui a
fruir, e o importante é estarmos todos aqui a dançar.” Mas achas que isso vem da vergonha ou embaraço pela nossa própria
cultura? “Isso é uma história muito mais complexa do que isso. Tem a ver
com apesar de tudo o que se possa pensar do Salazar, ele tinha com ele uma
pessoa muito inteligente, que era o António Ferro. O António Ferro consegui
fazer um fenómeno de folclorização, de tornar os camponeses estetas e de tornar
toda uma cultura popular completamente estética. Um fenómeno mastigado por um
ideólogo que foi buscar as mesmas ferramentas que já tinham usado os nazis e as
grandes nações nacionalistas, para fazer da música folclórica um grande porta
estandarte para criar uma identidade cultural. Em que o indivíduo era ele
próprio a identidade cultural massiva, era como se cada pessoa pudesse
representar toda aquela identidade popular. E isso foi uma coisa tão forte ideologicamente,
e tão bem pensada, que a seguir ao 25 de Abril, toda a gente se quer libertar
disso. E o preconceito continua, tudo o que é folclore é uma cena horrível,
porque é uma cena mastigada pelo António Ferro para os urbanos. Porque até aí,
todos os cancioneiros, toda a história da música popular foi feita para as
senhoras cantarem. Há muitos cancioneiros que erradicam logo as polifonias,
porque aquilo era feito para as senhoras cantarem nos serões das cidades, e as
polifonias não cabiam. Tinha de haver outro tipo de cancioneiro para se poder
cantar ao serão nas cidades. Logo aí se começou a retirar e a esmagar montes de
música que havia noutros sítios. E quando o Armando Eça, em 1940, vai fazer as
recolhas todas, e é a primeira pessoa, em Portugal, a registar com um gravador
o levantamento musical do país todo, está a fazer isso para o António Ferro e
para a Comissão das Celebrações do Mundo Português de 1940. Quando eles ouvem o
resultado, aquilo não encaixava nos valores do que o regime queria fazer com a
música popular. Eles não estavam preparados para a polifonia, para as músicas
destimbradas, para as senhoras que cantavam ao guincho. Como não estavam
preparados, todos os registos dele ficaram encaixotados nos arquivos durante
anos e anos e ainda lá estão.” Como um
OVNI? “Sim, um objecto cantado não identificado.” E tu, ainda és um OVNI na música portuguesa? “Sim, continuo a ser.
Eu tenho uma camisa às flores, e sempre disse sobre a história do exotismo, que
eu quero deixar de ser exótico. Porque a partir do momento que eu deixar de ser
exótico, é porque toda a gente compreende que o fosso já não tem que existir.
Agora, enquanto o que eu fizer for uma cena exótica, porque gravo velhinhas e
isso é exótico e isso é maravilhoso, porque faz notícias… E vamos lá
entrevistar o Tiago Pereira porque ele é exótico, e urbano e é o hipster das
velhinhas… O hipster das velhinhas é que tem que acabar. Quando eu deixar de
ser exótico é porque o fosso deixou de existir, e então aí vivemos todos num
mundo maravilhoso. Isso é a utopia Pereira.”
Pereira na escola
Temos
uma amiga em comum que foi colega dele no Liceu Passos Manuel, em que o Tiago
era conhecido por ser um malandro com as miúdas. Eras um malandro, na escola? “Se eu era malandro? Na verdade não me
lembro muito, ela quando me vem com a história de que eu levantava as saias, eu
não me lembro.” Mas e a música, tinhas
música na escola? “Não tinha, o meu pai era o Júlio Pereira, era uma seca.
Eu era um dissidente, não queria andar na escola. Eu andei em dez liceus, em
dois colégios internos e fui expulso de Portalegre ao fim de três meses. Em Rio
Maior desisti ao fim do primeiro mês. Tentei estudar à noite, chumbei por
faltas sete vezes na vida, eu não era feito para andar na escola. Nunca fui
feito para estar dentro do sistema, eu era uma pessoa particular e ainda hoje
acho que o direito à diferença é a coisa que se paga mais cara neste mundo. E
eu paguei bem caro o meu direito à diferença, queriam que eu pertencesse a uma
coisa com a qual eu não me identificava. E em 91 ou 92 o meu pai faz a música
para um filme sobre o Júlio Pomar realizado pelo Rui Simões, daí a história
toda com o Pomar… Daí o Rui Simões abre um curso de video na Academia de Artes
e Tecnologias, e eu vou para lá, assim como uma espécie de última salvação. O
meu pai tinha uma teoria muito cómica que ainda mantém, e que tem a ver contigo
e comigo, ele sempre foi adepto de que eu só fazia vídeos, e que o video podia
ser uma boa coisa para mim, porque eu tinha visto muito teatro quando era
pequeno.” Marcou-te? “Repara que o
meu pai faz aquela primeira peça muito famosa, que o José Mário Branco musica,
que foi a primeira peça a seguir ao 25 de Abril com música ao vivo (Ao Qu’Isto
Chegou! – Feira Popular de Opinião, A Barraca 1977), e depois disso ele faz
música para uma série de peças da Barraca. Eu passava a vida a ver as peças, devo
ter visto o Fernão Mendes Pinto umas setenta e oito vezes, eu ía a todos os
ensaios, vi mesmo muito teatro. Eu não vejo qualquer tipo de ligação, mas
depois vejo os vídeos da MPAGDP e penso: plano fixo, a cena do palcozinho,
aquilo é completamente teatral, ir descobrir os sítios esquisitos para pôr os
músicos, há lá sempre uma encenação. Se calhar a forma como faço os vídeos da
MPAGDP tem a ver com encenação e isso remete à minha infância do teatro, mas
são só especulações.”
A escola de cinema
O
Tiago andou na Escola Superior de Teatro e Cinema, ainda na Rua dos Caetanos ao
Bairro Alto, na mesma altura do que eu. Devemos ter-nos cruzado algures pelos
corredores ou escadas, já que as escolas apesar de partilharem o nome eram de
facto separadas à nascença. Quando foi
isso? “Em 96/97 eu vou para lá, e adorava aqueles armazéns, mil vezes
melhor que a Amadora ( A escola mudou de instalações em 1999). No final do
primeiro ano vou trabalhar para a produção do filme A janela (Maryalva Mix) do Edgar Pêra. Nessa altura ele estava a
fazer esse filme e tinha instituído a Academia
Luso Galáctica, que era aquela coisa louca em que havia os cadetes de uma
grande nave espacial, que ele pilotava, e em que os cadetes faziam tudo. Então
aí nós éramos actores, realizadores, montadores, animadores, filmávamos,
recortávamos, nós fazíamos tudo, e isso era uma grande escola. Quando chega a
Setembro, eu não vou para a escola de cinema, obviamente, estava a ser Cadete Luso Galáctico. Em Janeiro tento
regressar, ao curso de montagem, e no primeiro dia que entro na sala de
montagem não está lá ninguém e pedem-me para ver uns filmes que tinham sido
feitos em Novembro. A primeira coisa que faço é cortar fotograma a fotograma e
ponho a andar para trás, técnicas do Pêra, para experimentar como é que é com a
película. Faço isto e o director da altura, o José Bogalheiro, chama-me e
diz-me: Se você quer fazer brincadeiras como o seu amigo Pêra, não tem lugar
nesta escola. Então eu desisti da escola.” Então
só fizeste um ano em montagem? “Fiz o primeiro ano, que era geral e tive um
dia em montagem. A Ana Luísa Guimarães gostava muito de mim, por isso tive uma
boa nota em montagem. Eu tinha média de 10, mas em montagem, que valia 70%, da
nota tinha 18. Eu tinha média de 10 porque não queria fazer os trabalhos que
eram uma seca, então fazia muitos bons testes.” Fizeste um argumento para as provas de acesso? “Sim. Os temas,
nesse ano, eram o sonho, o futebol e a ambição, e eu fiz sobre o futebol porque
quando era puto sofri de Bullyng, por
não gostar de futebol e ter ficado preso a uma baliza durante quatro horas.
Então, fiz um argumento sobre um gajo que é preso à baliza por não gostar de
futebol, e fui entrevistar sociólogos sobre as questões das discriminações e o
direito à diferença.” Mas já estavas no
campo do documentário, ou chegaste a fazer ficção? “Sim, na escola quando
chegavas a um projecto, davas um texto à discussão para todos discutirem,
depois é que escolhiam os textos para os filmes, e daí é que se fazia o
argumento. Toda a gente dizia que os meus textos eram os mais imaginativos e
que eu tinha uma imaginação prodigiosa, mas nunca ninguém escolhia os meus
textos porque aquilo era não fazível.
Porque o meu primeiro filme, que fiz na AAT, chamava-se Como Sobreviver a Fazer um Filme Depois de
ter Visto um Filme do Moretti.” Estamos
na altura do Caro Diario? “Sim, depois de veres aquilo vais fazer um filme
sobre o quê? E o meu filme, era um filme sobre todos nós e era uma grande
confusão, eu lançava I Ching numa
rocha e via… as coisas que tu me fazes lembrar.”
O documentarista
Lembro-me
de o Tiago dizer que a ficção não lhe interessava, que não se via a realizar
argumentos ficcionais. Continuas a não
ter interesse em fazer ficção, como realizador? “Porque o documentário é a
melhor forma de ficção que existe. Todo o documentário é ficcionado, só podes
mostrar o real, ficcionando, não podes mostrar o real se não for ficcionado.
Essa é a grande questão, porque isso é grande diferença entre o Tiago Pereira a
gravar velhinhas, ou a gravar desgarradas ou a SIC ou a TVI ou o Bom Dia Portugal. Qual é a diferença? É
que o Tiago Pereira chega aos sítios e diz: a senhora vai cantar esta música e
vamos gravar ali, e monto a cena. Eu monto o cenário para aquilo ser gravado,
lá está a tal cena do teatro. Eu construo aquela realidade, não estou a tirar a
realidade à senhora, porque ela vai cantar a realidade na mesma, mas construo a
realidade. Quando fazes isso, estás a ficionar mas ao mesmo tempo estás a fazer
com que aquilo possa entrar noutros contextos. O objectivo é sempre chegar ao
maior número de pessoas, portanto pensas sempre naquilo, como alguém que é de
Lisboa e tem preconceitos. Toda a história da MPAGDP é eu a libertar-me de
todos os preconceitos dos anos 80, de Lisboa no Frágil, sempre. Eu, ainda hoje, sou o gajo mais preconceituoso que
há. Eu tenho preconceitos e muitos, e vou quebrando um a um. O objectivo da
minha vida é quebrar os preconceitos e vou quebrando. Como sabes que os
preconceitos existem, tens de criar os cenários para que aquilo seja visto de
outra maneira, essa é a diferença com os programas da TV, neste momento.” Mesmo em documentários sobre outras coisas
que não a música popular? “Acho que é possível em todas as cenas, mesmo
quando o Robert Flaherty fez o Nanook ofthe North nos anos 20, ele encenava cenas usando o contexto, mas era
encenado. O documentário para ser real tem de ser ficcionado, caso contrário
estás na BBC Vida Selvagem, mas no
estado natural, porque mesmo nesse caso há encenação. Há sempre uma
construção.”
O visualista
Nas
muitas assinaturas do Tiago, esta despertou-me logo para a pergunta. O que é um realizador visualista? “É
alguém que explora os limites do meio audiovisual, que explora o meio
audiovisual até aos seus limites. É uma corrente que tem a ver com o VJing e as performances audiovisuais,
que defende que um visualista explora todos os limites do audiovisual até ao
infinito. É oposto a uma corrente que acha que o cinema tem de ser numa sala às
escuras, com um projector e pessoas sentadas em frente a uma tela. O visualismo
defende que a imagem pode ser projectada no tecto, e que o som pode vir de 50
colunas diferentes, que o meio é muito grande para estarmos presos a fazer
cinema sempre da mesma maneira, e que o podemos fazer como queremos, isso é um
visualista.”
Canal de arquivos para celebrar a variedade
da música feita em Portugal
A
Música Portuguesa a Gostar dela própria, o claim
deste projecto iniciado em 2011, já passou a fasquia dos 1000 vídeos e já tem
mais de 70.000 fãs no facebook. A música
portuguesa já não gosta dela o suficiente? Tu vais continuar a fazer vídeos até quando? “Até morrer, até ser
velhinho e haver alguém para me gravar a mim, e eu gravar o mesmo gajo que me
está a gravar a mim, e a dizer agora cantas tu, não há limite. Cada vez me
apercebo mais, e quanto mais gravo, que é mesmo muito complicado isto da música
popular, pela música popular ter sido estudada, até ao Giacometti, por
académicos e ter estado sempre dentro da academia. Isso criou o problema da
música popular não ser conhecida pelo comum dos mortais, estava tudo dentro da
academia, mesmo quando se editam teses, quem é que as vai ler? Portanto, a
partir do momento em que o Giacometti e o Lopes Graça lançam a antologia para o
mercado, aquilo começa a chegar às pessoas e isso muda a música portuguesa. O
José Mário Branco é um dos exemplos, porque as pessoas ouviram aquilo e depois
de saberem que aquilo existia, também queriam fazer o mesmo. De certa forma
criou-se um mito, dentro da academia, apesar de o Giacometti não ser académico
e nunca lhe terem dado valor como académico, porque ele era jornalista, mas
como ele construiu um arquivo para os académicos estudarem, tiveram de o fazer.
Tal como eu construo arquivo para eles estudarem, porque eu estou no terreno e
eles não. E o mito é que ele gravou tudo e que já está tudo pesquisado, só que
há o grande fenómeno de desertificação portuguesa, e como toda a música
portuguesa é feita por académicos, foi instituído de uma forma invisível um
mapa etnomusical português. Mapa esse, que vem dos percursos do Armando Leça,
do Kurt Shindler em Trás-os-Montes, do Artur Santos na Madeira, Açores e Beira
Baixa e depois o Giacometti que foi fazer o mesmo mapa que o Armando Leça.
Todos eles andaram a fazer a mesma coisa. Tinhas uma aldeia em que cantavam
polifonia, mas que cinco quilómetros à frente cantavam polifonia também, mas
como todos tinham ido à primeira, ninguém tinha gravado a outra. Como todos
tinham gravado tudo, no mesmo sítio, umas cinco mil vezes, já estava tudo
catalogado. E nos sítios mais industrializados, ninguém ia, pela lógica que
nesses sítios com a rádio e a televisão, as contaminações chegaram mais
depressa, então não haveria nada de interessante. Eu não sou desse ponto de
vista, primeiro porque não sou académico, nem cientista, não ando à procura de
verdade nenhuma na música, a mim o que me interessa é dar a conhecer a música
que se produz. Tanto faz se é a música que cantas na banheira ou a de um grupo
organizado que se junta para tocar, ou uma velhinha que está sozinha. Gravei
agora uma senhora em Vieira do Minho, que cantava mesmo bem, e eu perguntei:
Canta aonde? Na banheira.”
O mendelista
Ao
ouvir o sistema de pensamento do Tiago, lembrei-me do pensamento darwinista e
da sua visão catalogante do mundo. Talvez mais pelas viagens e belas gravuras
feitas a bordo do HMS Beagle, que pela teoria da evolução das espécies, mas
tive de perguntar: És darwinista?
“Eu, meu caro, Edgar Pêra 1997, na montagem era assim, escolhias material e ele
dizia: Isto é Mendel, não é Darwin. Nós queremos o melhor dos melhores, não
queremos a evolução da espécie. O meu discurso não tem nada a ver com isso, eu
sou uma espécie de mensageiro, eu vou aos sítios, gravo e depois uso as redes
sociais para difundir e democratizar a música, no sentido de quebrar a
hierarquia musical que nos condiciona, da tradição clássica que diz que há um
maestro e o quarto violino cá em baixo.” Não
te interessa teorizar? “Não, não quero. Vou teorizar sobre o quê? Eu tenho
a minha própria teoria, mas a minha própria teoria também está sempre a ser
alterada, quanto mais gravo. Hás vezes tenho ideias convictas sobre uma coisa e
passado três meses aquilo desfaz-se. Porque descubro que a teoria estava
errada, porque ainda não tinha lido aquele livro, artigo ou tese, ou porque
ainda não tinha gravado não sei o quê. A minha posição, mesmo sobre a música,
está sempre a alterar-se. A única posição que nunca se altera é a de que eu não
sei o que é a música portuguesa, e vou morrer a não saber.”
Perguntas para respostas rápidas
Tentei
e pensei muito, admito, nas seguintes perguntas que todas, apenas com uma
excepção, provocaram resposta imediata do Tiago. A mais hesitante está
assinalada com um asterisco.
Porque é que a música portuguesa precisa de
gostar dela própria?
“Por
50.000 razões. A primeira razão é porque a música portuguesa não se conhece. A
segunda é porque nunca houve autoestima sobre a cultura feita em Portugal,
ainda menos sobre a cultura popular. A terceira razão é porque sempre existiu
um fosso entre uma cultura popular e uma cultura urbana, e agora estamos a
assitir a uma coisa sinistra que é uma coisa mastigada, igual ao António Ferro,
de fazer turismo a partir do que achamos que é a cultura popular, mastigada
pelos urbanos para vender galos de Barcelos às cores aos turistas. É tudo feito
para o turista, as coisas deixam de ser feitas para os que vivem cá. A música
portuguesa, na maior parte das vezes, não gosta dela própria.”
O que é alfabetizar a memória?
“É
ter a consciência de que toda uma memória popular e toda uma tradição oral, que
sempre passou de avós para netos aos serões e os serões eram muito importantes
para passar a aprendizagem, está completamente esquecida. E que é tão
importante gravar e recolher o que os avós nos dizem, com todo esse
conhecimento antigo de memória, como é importante saber ler e escrever.”
Quem canta seus males espanta?
(asterisco) “Sim,
para aliviar as penas e as mágoas do coração."
O que é o surrealismo popular?
“Há
90 anos, toda a gente cantava neste país. Tudo o que tinha práticas cantava,
apesar de termos vivido em fascismo, não há ninguém que tenha vivido esses
tempos, e que graves hoje, que não te diga que aquilo eram tempos maravilhosos
e que têm imensa recordação sobre eles. Por vezes é uma tendência dizer isso,
mas a verdade é que essas pessoas, por mais fome que tenham passado, tinham a
questão de estarem juntas, de cantarem e dançarem juntas, e isso é uma coisa
que lhes ficou na memória. O cantar sempre aliviou tudo, era usado como um
auxilío para os males de que sofrias, era um entretenimento antes da televisão
e do rádio. Era uma forma de puderes estar em social e em celebração, do fim do
trabalho, de estares com alguém, da comunhão, do casamento, blá, blá, blá. O
surrealismo popular é todo um surrealismo inerente às pessoas do campo, que por
vezes nos esquecemos que existe como: Tenho,
tenho, tenho entre as pernas um engenho, daqui como, daqui bebo, daqui pago a
quem devo e pago dívidas atrasadas. E agora explica lá porque é isto… isto
é surrealismo popular. O Zeca estava sempre a dizer que era incrível o
surrealismo que havia no povo e que esse surrealismo era super importante, e as
próprias letras dele são surrealistas nesse sentido. É surreal e as pessoas são
surreais porque são incoerentes e no campo, por terem uma vida dura, percebem
muito mais depressa a sua incoerência do que outras pessoas quaisquer. Ser
humano é ser incoerente.”
E o povo que ainda canta?
“Sim,
está a correr bem o programa da Antena 1. O feedback é sobretudo da emissão das
6h. É lindo, vais gravar alguém no campo e ouves: Eu ouvi o seu programa às 6
da manhã, ontem. Nunca é feedback das 6 da tarde. A rádio é fixe porque entra
na casa de toda a gente, ninguém sabe definir qual é o público que o programa
tem. Mas já recebemos uma carta que perguntava porque é que haviam tão poucos
ranchos folclóricos no Povo que Ainda Canta? Mas há, há vários ranchos
folclóricos.”
Associações emocionais
Eu
dizia uma palavra e o Tiago dizia a primeira coisa que lhe vinha à cabeça.
Assustado, só um bocadinho, depois de alguns impropérios, lá disse: estou
pronto!
Campaniça – Viola. Adélia Garcia – Amo, a maior diva que
este país tem, carago. Carago para a Amália. Pedro Mestre – O Wally do cante
alentejano. O gajo é grande e está em todos os vídeos. Olhas, e ali está o
Pedro Mestre. Michel Giacometti – Kill Giacometti.
Era o nome do blog. Eu tinha um blog chamado Kill Giacometti. B Fachada – O rei, o rei Fachada.
Fachada é o rei. Ele é muito inteligente, a minha história com o Fachada é
genial. Mouraria – É suja e porca e as culturas
não se misturam. Sampladélicos – Ficção científica da
música portuguesa. Sirene – Sirene dos bombeiros é uma música
dos Sampladélicos. O Sílvio… havia uma manifestação na rua, ele pôs o gravador
e nós misturámos a gravação disso com uns bombos que eu tinha gravado e mais
umas violas de arame e deu uma música. Fado – Por acaso é lindo, gravei um
homem que tinha feito dois fados, um deles era sobre um sogro que tem uma
bicicleta e furos na camara de ar, e outro era sobre um desgosto de amor, tu estás tão fininho e amarelinho. O
fado é como outra qualquer expressão, como qualquer música popular portuguesa.
Agora o fado acaba por esmagar muitas outras formas musicais. O fado está para
a música portuguesa como a mazurca está para os bailes portugueses. Rosa – A rosa é uma coisa linda, sabes
porquê? Porque rosa é o nome feminino que mais aparece no cancioneiro popular
português. É raro encontrares músicas que não tenham o nome Rosa. Rosa Maria tão linda assim, ai quem me dera
prender-te a mim, Maria Rosa tão linda flor, ai quem me dera ser teu amor.
Deixa-me ai uma pergunta para o próximo artista…
Porque
é que fazes o que fazes? Eu acho que é a pergunta que toda a gente deve
perguntar a toda a gente, eu acho que devia haver blogs em que as pessoas
explicavam porque é que fazem o que fazem. E tu, porque é que fazes esta
entrevista? Porque sou curioso e
irrita-me que as pessoas não conversem mais sobre o que fazem. Pronto vês,
achamos os dois a mesma coisa.
Observação:
Esta entrevista foi realizada na Casa do
Alentejo a 3 de Junho de 2014, em dois momentos separados por sopa de tomate e
cigarros. Foto de Diogo Martins Quando o Tiago Pereira saiu de ao pé de mim, ia
a caminho de gravar para a MPAGDP o video 1001 com os Tais Quais.
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