O Conservatório da Rua dos Caetanos deixa-me sempre nervoso, desde a primeira vez que lá fui em 1993, que me ficou o trauma do nervoso miudinho. A primeira vez, para as provas de acesso ao Conservatório de Teatro, impregnou-me com um respeito típico de quem entra num monumento de outros tempos, com outros tempos e para outros tempos (musical esta frase, não?). Desta vez fui à procura do professor Bruno Cochat, como é por ali conhecido, para conversar com ele no seu Foyer* preferido, ou cemitério dos pianos como era conhecida nos anos 90. Num canto acusticamente simpático, o Bruno sentou-se como quem pergunta, mas porque é que este tipo quer falar comigo? Acho que não o desiludi na resposta a essa pergunta: quero falar contigo porque o que o fazes é admirável. Ali e em muitos outros locais onde ele se lembrasse de o fazer, nisso o Bruno Cochat está na minha lista de admiráveis.
Mas quem é este tipo?
O
Bruno Cochat é um bailarino, que passou a coreógrafo, a professor e encenador
de ideias visualmente musicais e musicalmente visuais. Nascido em 1971, passou a
grande maioria da vida neste eixo Chiado-Bairro Alto. Apesar de nunca ali ter vivido,
as velhotas da rua acham que ele vive por ali, tanto é o tempo que por lá
passa. Começou a dançar com 9 anos e estreou-se no Teatro Nacional de São
Carlos com 13. Andou na Companhia Nacional de Bailado, no Ballet Gulbenkian,
trabalhou com Olga Roriz, Sílvia Real, Filipa Francisco, fez teatro com a Maizum, entrou num filme do Paulo
Rocha e sem imaginar tornou-se professor e produtor na Escola de Música do
Conservatório Nacional.
Trabalho Artístico em Portugal
Achas
importante regulamentar o trabalho artístico no nosso país? Não podia deixar de
começar com a pergunta que a Carla
Chambel tinha deixado ficar da última conversa (Hábito e tradição que tento
levar a todos os entrevistados.) “Vejo essa necessidade para algum tipo de
trabalhos. Existem trabalhos que servem propósitos comerciais, publicidade,
locuções, esses devem ser regulamentados, mas em termos de teatro e cinema… não
acho que isso possa condicionar-nos, ao ponto de acontecerem coisas como um
coro deixar de cantar porque são cinco da tarde, ou não ensaiarmos porque é
feriado. Acho que essas coisas não são reguláveis. As áreas mais comerciais
podem ser reguladas, agora vai sempre continuar a fazer-se algum trabalho por
carolice, felizmente, vamos sempre continuar a fazer produções com pouco
dinheiro ou nenhum. Regulamentar algumas coisas sim, mas isso não deve impedir
que as coisas aconteçam.” Mas tabelar
valores à hora, subsídios de desemprego? “Depende do sítio, o meu trabalho
não tem o mesmo preço para todos os sítios, e se eu me regulamentasse a esse
nível, eu teria um preço que umas estruturas poderiam pagar e outras não.” Seria
esta a resposta que a Chambel
imaginava?
Aprender a Andar
O
Bruno andou sempre por esta zona da cidade, quase que aprendeu a andar entre a
Baixa, o Chiado e o Bairro Alto. Terá
sido por acaso ou terás criado condições para andares sempre por aqui? “Eu
só não vivo aqui, e sinceramente gosto de não viver aqui. Não só porque faz bem
afastarmo-nos de vez em quando, como acho que se arranjam melhores casas fora
do Bairro Alto. Mas para todos os efeitos é um acaso, a minha mãe estava a
acabar o curso em Belas Artes quando eu e o meu irmão nascemos, nem sequer vivíamos
aqui. Depois entretanto entrei para a Companhia Nacional de Bailado na Rua
Vítor Cordon, depois o São Carlos, fazia espectáculos no São Luíz, a Escola
Superior de Dança era aqui no Conservatório. Depois voltei para fazer a
licenciatura, já na Rua do Século e dois anos depois voltei como professor. Mas
a minha cidade é Lisboa e a minha terra é aqui. É uma coincidência, mas ficar
por aqui é opção.” Já te convidaram para
ires trabalhar para outros sítios? “Já, mas isso já tem muito a ver com uma
opção de investimento numa carreira académica, ainda que seja ao nível do
Secundário, isso tem consequências. Já me convidaram para dar aulas numa favela
do Rio de Janeiro durante 6 meses, e não posso, estou agarrado a uma escola,
para o bem e para o mal.” Mas
imaginavas-te a viver noutro sítio, mesmo que fosse a trabalhar num projecto
similar a este? “Eu acho que não há projectos similares a este, acredito,
sem modéstia nenhuma, que o meu trabalho nesta escola tem algum valor e algum
reconhecimento, mas também acredito que tem muito pouco valor ou reconhecimento
das portas para fora. Agora, nunca me passou pela cabeça fazer o que estou a
fazer, se há 15 anos me dissesses que iria ser professor no Conservatório, pior
ainda que eu iria gostar de ser professor no Conservatório, eu não acreditava.
Mas a verdade é que estou e gosto, não sei se isto é o trabalho que eu gosto,
ou se eu gosto do trabalho que tenho. Eu acredito que se fosse trabalhar para
outra estrutura, iria conseguir apaixonar-me e fazer o meu trabalho, mas não
sei se faria isso de caras. Aqui, tenho de concorrer todos os anos para
garantir o meu lugar. Já apareceu um convite para ir, com outro professor da
escola, para outro país fundar um Conservatório de raiz, que se eu fosse do
quadro e pudesse pedir uma licença sem vencimento, se calhar ia.” Preocupa-te a insegurança dessas opções?
“Eu por um lado acho muito desafiante trabalhar em insegurança. O facto de eu
ter que lutar todos os anos pelo meu posto de trabalho, isso é aliciante.
Verifico a minha vontade e o reconhecimento, nesse aspecto sou um bocado
vaidoso.”
Aprender a Dançar
Recentemente
colocaste um post no facebook em que falavas do teu primeiro espectáculo há 30
anos atrás. Lembras-te da tua estreia?
“Completamente, lembro-me de ver o Fernando
Lopes-Graça a passar nos corredores.
Eram duas peças pequenas, a primeira dele que era o Don Duardos e Flérida, uma peça contemporânea. O público reagia
muito mal, as pessoas saiam a meio e iam pedir aspirinas, que estavam cheias de
dores de cabeça. Estamos a falar do São Carlos há 30 anos, as pessoas iam de
smoking para a estreia. Eu era um dos filhos dos aldeãos, era uma criança da
aldeia que tinha uma cena e umas danças de roda.” E antes? “Eu era um miúdo, mas tenho a certeza absoluta, e isto na
altura parecia estranho, de ter tido a sorte de ter andado numa escola onde
haviam muitas opções e eu ia para tudo, judo, piano, tudo. Um dia distribuíram,
pelas miúdas, uns folhetos para o ballet, a minha mãe insistiu em ir comigo à
escola e comecei a fazer as aulas de dança. No secundário, na Amadora, onde,
tirando o director de turma e a minha colega de carteira, ninguém mais sabia
que eu andava no Ballet, ou porque é que eu saia todos os dias da escola mais
cedo, para ir para o Ballet na Companhia Nacional de Bailado, das 6 às 7h30 Ballet
e dança moderna das 7h30 às 9h. A partir dos 12 anos ninguém mais jantou a
horas na minha casa. Se é para fazer que se faça bem, ou fazes todos os dias ou
não vale a pena.” Sentes que a imagem da
dança mudou desde essa altura? “Acho que está igual, acho que há mais
informação, as pessoas já não têm um estigma tão grande, mas ainda tenho um aluno
na escola de música que pediu aos pais para ir para o Ballet, mas que pediu que
não se soubesse no colégio onde ele anda. Dentro dos próprios meios há mudança,
mas são meios privilegiados, sobretudo na música e na dança que se começa aos 6
anos.” E a clivagem entre o clássico e o
moderno? “Isso é a mesma coisa noutras artes, na pintura é a mesma coisa. A
formação não faz mal a ninguém, a Clara
Andermat, a Vera Mantero, o Paulo Ribeiro, são todos pessoas que
andaram no clássico. Mas também tens muita gente a fazer teatro sem formação. Não
tens de renunciar tudo o que aprendeste só para formares uma coisa nova. O que
me deixava insatisfeito era também isso, eu era um trapalhão e fui dizer na
Companhia Nacional de Bailado que eu ia fazer provas para o Ballet Gulbenkian,
era tipo Benfica e Sporting, ou estavas num ou estavas noutro.” A sério? “Havia essa rivalidade mais
entre nós não entre as direcções. Estive dois anos no Ballet Gulbenkian, mas eu
sempre tive a vontade de fazer coisas minhas, tanto que só trabalhei com a Filipa Francisco, a Olga Roriz, a Sílvia Real
e comigo. Mas nem comigo acho que sou o melhor intérprete.” Porquê? “Porque eu acho que eu desconstruo
muito as coisas, o processo. Dei por mim a ver o trabalho da Pina Baush na RTP, o 1980 pelo menos uma
vez por ano, e a pensar como é que isto se faz, como é que se chega ali?
Tornava-se uma espécie de masterclasse
e não assistia apenas como espectador.
Um bom bailarino, ou um bom actor não deve desenvolver demasiado este lado, tem
que acreditar deve deixar-se levar, ser instintivo. Se começa desconstruir de
mais, entra naquela self-consciousness
que já destruiu muitas pessoas.
Cinema?!
Fiquei
tão curioso que pedi ao Bruno que contasse a história de como entrou no filme
do Paulo Rocha, Portugaru San – O Sr.Portugal em Tokushima. “Vamos recuar no tempo
a 92 ou 93, tinha acabado de voltar de Madrid, e o Teatro Maizum decidiu fazer uma peça a partir da correspondência
entre o Wenceslau de Moraes e a sua
irmã. A peça passava-se em dois planos, um superior com a irmã em Portugal e em
baixo as cenas do Japão. Foi um trabalho com imensos apoios, portugueses e
japoneses, e o Paulo Rocha como tinha
feito a Ilha dos Amores no Japão, foi
ver a peça com o Paulo Brandão,
compositor do filme, e pediu para filmar no palco do Teatro Maria Matos durante uma semana. Eu dançava e fazia a morte.
O Paulo Rocha descobriu que eu os
matava com os olhos e no filme há várias cenas no filme em que os mato com os
olhos.” Mas foi o teu único filme? “Fiz
de duplo do Joaquim de Almeida, num
filme francês com a Fanny Ardant, Amok. Parece que ele dança com os dois
pés esquerdos, então a cabeça é ele e os pés sou eu. Ah, e entrei como
figurante na Tosca do Zeffirelli.
Uma partida: Se pudesses entrevistar a Pina
Baush, o que é que lhe perguntavas? “Eu acho que não há muitas pessoas geniais,
há alguma boas, competentes… Eu colocava uma pessoa genial na música, o Ney Matogrosso, que em termos de
espectáculo do principio ao fim é absolutamente genial. O Picasso na pintura, eu esmago-me a ver coisas dele e a forma como
ele pintava. E a Pina Baush na dança.
Vi-a ao vivo em espectáculos, mas em 94 fizeram audições para a Companhia dela,
e eu sempre disse que não ia, porque tinha lido que ela só trabalhava com pessoas
acima dos 35 e eu tinha 20 e poucos. Hoje percebo perfeitamente porque é que
ela disse isso. As pessoas da dança estão mais tranquilas acima dos 35, estão
mais disponíveis para dar mais história. Mas fui à audição. Ela não estava
muito interessada em descobrir bailarinos, fumou 5 ou 6 cigarros enquanto nós
suávamos na audição… Não ficou ninguém, mas ela dançou à nossa frente e era
absolutamente extraordinária.” E se lhe
pudesses perguntar alguma coisa? “Eu gostava de lhe perguntar porque é que
ela era tão triste. Dá-me a sensação que algumas pessoas geniais tem de ter
alguma coisa que as apoquente. Eu também sou um bocado insaciável à procura da
perfeição. A perfeição não existe, sabemos que ela não existe, mas vamos andar
a vida toda à procura da perfeição, e nunca a vamos encontrar, é isso que nos
mantém activos e a funcionar. Ela tinha isso. Não lha queria tirar mas gostava
de saber se era isso.”
Dizes que o único material fundamental para
as aulas é o “Eu”, o que é isso? Há um “Eu” artístico? “Há, que toda a
gente tem. Muitas vezes as pessoas não se apercebem da riqueza que elas são. Eu
estou a dar umas aulas voluntárias na Voz
do Operário e cometi a loucura de juntar 2 turmas do 5º e 6º ano e de trabalharmos
sobre o “eu”, a confiança, a postura, a improvisação, o ridículo, o poder do
ridículo, o que é a liberdade. E estamos a chegar lá, acho que é mesmo sobre o
“eu”. Sobre o que nós somos e o que nós temos. Também gosto de trabalhar o que
somos, com o “eu” e o “não eu”. O “não eu” pode ser uma personagem com alguma
loucura. Como trabalho com crianças obriga-me a ser muito claro, e quando digo
algo tão bizarro como representar é não representar, e que não quero que vejam
que estão a representar. A tua personagem para além de falar tem de pensar, a
partir do momento em que tu sentes o que estás pensar ou pensas o que estás a dizer
deixas de representar, ou pelo menos deixa de se ver que estás a representar. Também
estou a escrever, em parceria, um livro sobre o meu trabalho, com entrevistas e
muitas fotografias, mas quero que seja um livro de mesa cheio de reflexões.” E esse “eu” artístico é o potencial de
criar coisas? Se nós conseguirmos deixarmo-nos ir… eu tenho visto miúdos a
improvisar como não vejo muitos adultos a fazerem, ainda hoje tive uma miúda a
dizer-me que não tinha ideias. Nós não vimos para aqui para ter ideias, tens de
te deixar ir, deixa a música falar contigo. Isso é o teu “eu”, quando consegues
deixar-te ir, pôr as merdas de lado, e depois umas pessoas tem uma fisicalidade
mais assim e outras mais assado.
E o ensino artístico?
“Eu
acho que as expressões são tão importantes, ou mais, que as ciências e as
humanidades. Mas há que desconstruir muita coisa ainda antes disso. Pelo que tenho
visto, a maior parte dos professores das
expressões dramáticas, plásticas e musicais são muito mal formados, estão
cheios de receitas na cabeça. Fui convidado agora pela Associação Portuguesa de Educação Musical para fazer formação de
formadores, fico contente pelo convite e penso até que enfim. Já fiz formação no
Festival Internacional de Artes
Performativas de Sintra, e os professores enviados pelos agrupamentos não
têm formação nenhuma e depois não sabem tirar o potencial dos alunos. Vamos primeiro
descobrir o que os alunos sabem fazer e depois partimos a partir dai.” Achas possível a massificação do ensino
artístico? Se nos obrigarem a seguir programas, não funciona. Mas se a casa
não faz, a escola tem por missão fazer. Os miúdos tem de ser levados a ver
coisas que os façam pensar, já chega de espectáculos tipo a ilha das cores, das
flores, dos números, canção sim, canção não. Tem de se ter cuidado o que se mete
dentro da cabeça dos miúdos, os miúdos não estão habituados a pensar, a sentir
e isso vai se pagar ou já se está a pagar.
Vamos a respostas rápidas
Comecei
por uma fácil: Como é que te sentes a
dançar? “Eu gosto muito de dançar, esparvoar, como numa festa de uma amiga
a que fui e em que perguntaram se fazia isto profissionalmente e se podia ir a
festas delas. Conseguir esse tipo de libertação a dançar é extraordinário.
Dançar é muito libertador.” E a encenar,
como é que te sentes? “Sinto-me representado, que é uma coisa que eu não
sentia. Sinto que aquilo ali é a minha linguagem a partir de outra pessoa.” E a trabalhar com crianças? (Resposta imediata.) “Adoro, eu não quero deixar de apanhar
os miúdos mais pequenos, a iniciação. Acho que é muito importante começar bem,
gosto muito de começar. A minha avó materna dizia que o professor mais
importante é o primeiro, o que nos ensina a gostar, ou não, da escola.” E como é que te sentes a produzir? “Há
uma sensação boa de quando se atinge aquilo que se queria fazer. Vamos ser cada
vez mais autores produtores, temos de saber agenciarmo-nos. Um músico não pode
chegar a um barzinho e não saber se são cabos ou fios que precisa, holofotes ou
projectores. Há artistas que não sabem o que vestir, que não têm umas palavras
que expliquem o que são, isso tem de mudar.” Como é que te costumas apresentar? “Cada vez mais como professor,
mas eu para todos os efeitos sou bailarino, mas também há a questão da produção
na minha vida, ou como diz o Ney Matogrosso,
sou um Artista (dito com sotaque
brasileiro).”
Pergunta para o próximo
Lancei
o desafio do costume, uma pergunta para um próximo artista. O Bruno andou às
voltas, pensou e disse com a confiança que geralmente emite: “O que é que te
move?”
Onde podem ver o Bruno Cochat?
Durante
a semana, na Escola de Música do Conservatório Nacional, nas ruas entre a Baixa
e o Bairro Alto e claro está no Foyer,
esse Hall de Entrada para a escola e para a vida do “eu” artista do Bruno.
Observação:
*Toda a nossa conversa no Foyer foi acompanhada
pela banda sonora involuntária de solos de clarinete e trompete, emanados
algures do fundo de uma galeria invisível. As saudades que isso me deu J
Esta entrevista foi realizada no dia 13 de
Maio de 2014.
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