Tanto
é o vermelho no Jardim da Parada em Campo de Ourique, a mesa e as cadeiras do
café, a minha bina, o Alpha Romeu estacionado em frente, e a t-shirt do
convidado, que tudo me parece um quadro de explosão cromática solar, com a cara
sorridente do Herberto (o convidado) ao centro. Nunca me arrependi de uma
conversa com este grande homem negro de quase dois metros. Aberto, disponível,
curioso sobre todos os temas da nossa humanidade, perguntador e sobretudo
interessado em conversar, não só comigo mas com todos os seres curiosos com que
se cruza. O Herberto é um conversador nato e, por curiosidade, descobri que o vi
pela primeira vez num espectáculo no Teatro da Trindade, fazia de anjo e
transportava o corpo da Julieta no final. Ele é isso, uma espécie de anjo deslizante
ou um demónio perguntador de ideias. Nesta conversa, um de nós será o herói e o
outro o anti-herói, mas só nesta conversa, que pelo menos para mim no resto do
tempo, o Herberto é o melhor fotógrafo que conheço.
Mas quem é este
tipo?
O
Herberto Smith é um fotógrafo storyteller
de 39 anos, nascido em 1974 na Guiné Bissau, adolescente em São Tomé, de onde
são os seus pais, e muitas coisas já em Portugal. Foi modelo fotográfico,
participou em peças de teatro, fotografou catálogos para a industria de
cerâmica, mobiliário de escritório, moda e pessoas na rua. É casado e tem dois
lindos filhos, que também fotografa regularmente.
Uma pergunta do
Tiago Pereira
Seguindo
a tradição, o conversado anterior, Tiago Pereira, deixou uma pergunta ao
próximo, que calhou ser o Herberto: Porque
é que fazes o que fazes? “Eu faço o que faço porque gosto de pessoas e
gosto de histórias. E a fotografia para mim é só uma ferramenta para aproximar
pessoas, e aproximar-me das pessoas, e ilustrar algumas ideias, já que não
desenho nem escrevo. Durante a minha adolescência houve um período em que
estive interessado na escrita, desenhava e escrevia poesia.
As viagens da
origem
O
Herberto nasceu num sítio, passou para outro e acabou por aterrar em Lisboa. Conta-me lá essa história. “Antes da
independência, os meus pais, que eram funcionários bancários, estavam a
trabalhar na Guiné-Bissau e conheceram-se lá. Daí sai eu com cerca de três
meses, nem me lembro de nada, e passei a minha adolescência toda em São Tomé e
Principe, de onde eles eram, e depois vim para cá com dezoito anos. A minha
formação como pessoa foi toda feita lá.” Tens
saudades? “Eu tenho saudades mas é mais por questões familiares, sinto
falta de algumas pessoas. Mas a minha ligação com São Tomé é a mesma que tenho
com África, sinto-me cada vez mais um africano, do que especificamente só são-tomense.
Mas quem eu sou hoje e a energia que eu transporto tem a ver com o crescer lá,
sou uma pessoa calma, um bocado introspectiva, hás vezes melancólica, tudo isso
tem a ver com a energia que eu absorvi. Cresci numa ilha e aspirava a outras
coisas maiores, cresci muito próximo do mar, a minha casa era a cinco metros da
praia. Mas o meu perfil psicológico sempre foi um bocado à margem, não me
identificava muito com algumas coisas, eu tinha um lado mais poético, e ali as
pessoas vivem de outra maneira. Provavelmente eu tenho um espírito muito são-tomense,
mas a forma como vejo mundo é diferente,
mais abrangente.” Mas e se tivesses de dar
um nome à tua nacionalidade? “Eu acho que não tem nome, é uma mistura de
influências. Sempre fui muito curioso e sempre li livros um bocado avançados
para a minha idade, até era um stress que tinha com o meu pai, que não gostava
que eu mexesse nos livros dele. Quando era pequeno lia livros relacionados com
psicologia, filosofia, tudo o que me explicasse melhor a natureza humana,
porque agimos assim e pensamos de determinada maneira, isso é um dos meus maiores
interesses.”
Filosofia crioula
Procurando
perceber as maneiras como o Herberto se vê a si próprio, encontre-lhe um site
onde se descreveu como Believer, Creater,
Dreamer, Father, Human Being, Husband, Lifelong learner, Lover of life,
Photografer and Storyteller. É isto?
E por esta ordem? “Sim, é uma mistura. Agora já não me lembro, mas sim tem
uma sequência, mas não pensei na ordem de importância.” És então uma mescla de coisas, há em ti um lado crioulo? “Eu tenho
andado a fazer um exercício, que é tentar definir a minha história, a minha
missão. É um processo que comecei há uns meses, e que não é muito fácil. Há já
imenso tempo que faço coleção de notebooks,
livrinhos, onde vou apontando ideias, e tenho imensas coisas dispersas por aí.
Ainda ontem estava a estruturar, um mind
map das coisas que me interessam no momento. Porque eu interesso-me por
muitas coisas, e a partir do momento em que eu me consigo organizar ou definir
uma linha, as coisas acabam por acontecer.”
Engenharia prática
Aparentemente
o Herberto estudou engenharia. É
verdade? “Sim. Não acabei, mas estudei gestão e engenharia industrial. Eu
estudei no ISCTE, e depois quando estive a trabalhar em Águeda, fiz a
transferência para Aveiro, mas acabei por não terminar.” Mas qual é a história da engenharia? “É a história de muita gente,
hás vezes as pessoas não têm impulso para levar avante aquilo que acreditam.
Não foi uma vontade paternal, mas há sempre uma pressão psicológica iminente,
apesar de nunca me terem dito que eu tinha que fazer isto ou aquilo. E teve a
ver com a minha natureza. Eu gosto de coisas difíceis, por natureza, de coisas
que me dêem trabalho e que me façam pensar. Houve períodos em que tive
dificuldade com a matemática e com a física, mas depois consegui ultrapassar
isso. Mas depois por motivos da vida, tive de mudar de casa e conheci pessoas
ligadas ao mundo artístico.
Fotografia
comercial
Por
mais que o Herberto já me tenha tentado explicar, eu perguntei novamente e
perguntarei até perceber, de facto ;-) O
que é isso da fotografia comercial? “É fotografar produtos de forma a que
sejam apelativos e vendáveis. Produtos que podem ser roupas, sanitários,
pessoas. No fundo, a tua missão é ajudar a passar uma ideia e a vender um produto.
A ideia principal é vender.” Mas tu
tinhas feito algum curso? “Eu tentei alguns, mas acabei por desistir.
Quando estava no ISCTE, comprei uma máquina fotográfica e fui fazendo algumas
experiências, e depois houve uma altura em que eu conheci uma fotógrafa que
acabou por ser minha namorada durante algum tempo. Esse período de transição
coincidiu com um afastamento do curso, por razões pessoais, e com uma fase em
que comecei a trabalhar como manequim de moda, barman no Bairro Alto, e eu documentava esse processo. Documentava
quando ia aos castings, quando fazia
anúncios, e acabei por me oferecer como assistente de alguns fotógrafos da altura,
e as coisas foram evoluindo naturalmente. O curso foi ficando de lado e fui-me
assumindo como fotógrafo e manequim.” Lembraste
desse assumir ou há um acaso nisso? “Há um acaso, e é algo que sai com
naturalidade, porque eu não me identificava nem com o método, nem com os
professores do curso de engenharia, implicava sempre um esforço. Eu não tirava
prazer naquilo, já a fotografia saía-me naturalmente. Quando me encontro com
alguns ex-colegas de faculdade, eu não invejo nada a vida deles, não me
imaginava assim, só quando sinto falta de dinheiro… há sempre um bichinho, mas
de outra forma não invejo esse estilo de vida.” Mas nessa fase, também foste actor? “Actor… eu fazia de anjo no Romeu e Julieta do Fraga, era uma
figuração especial, não tinha falas. Eu era uma figura escultural apenas, era
puramente ornamental. Isso no fundo tinha relação com o meu trabalho de modelo,
e fui convidado para essa aparição. Depois também participei no Terramoto de
1755, do mesmo encenador.” E gostaste do
processo de repetição da história, todos os dias, que existe no teatro? “O
que eu achava mais interessante era a adrenalina da presença no palco, e da
comunicação. No fundo, há sempre uma troca de energia. Nunca me assumi como
actor, mas tenho consciência da minha presença, apesar de não falar tinha
consciência do impacto que podia causar ou comunicar, mesmo sem dizer nada.
Naquele caso era um questão de atitude e confiança, porque podes ser manequim e
estares em palco sem teres presença. É engraçado, porque eu sou uma pessoa
reservada que perante desafios, como ir à televisão dar uma entrevista e falar
de coisas que eu não percebo, consigo estar confiante e relaxado.”
Retratos
Mas
de todas as formas de fotografia que já experimentaste, qual é a que sentes
mais próxima do contar das histórias, qual
é a tua preferida? “Retrato, gosto mais de fazer retratos. O que me cativa
é a interacção, a relação com as pessoas. Ultimamente, tenho desenvolvido uma
série de retratos que não são propriamente programados, são retratos casuais.
Eu ando na rua, encontro pessoas e tento convencê-las a deixarem-se fotografar
por mim. Começa por uma abordagem física, exterior ou estética, mas também há
uma componente energética ou metafísica, que me vai apurando os sentidos. Cada
vez mais acerto nas pessoas que eu fotografo porque encontro histórias, que de
uma forma ou outra têm a ver comigo.” Como
se intuísses a história por detrás da cara? “Sim. Tem a ver com a
psicologia e a natureza humana, e acaba por ser um exercício. Cada vez mais as
pessoas afastam-se e vivem nas redes sociais e não interagem umas com as
outras. Para mim, isto é uma forma de quebrar essa barreira e interagir com
pessoas. Geralmente quando vou falar com elas, o que as faz sentir confortáveis,
é o entusiasmo que eu manifesto para as fotografar e lhes explico o que quero fazer. Depois há essa
troca, nem sempre as pessoas aceitam a primeira, tens de as convencer e mostrar
o que queres fazer. Honestamente, há um lado generoso, quando fotografo as
pessoas, quero sempre apresentá-las de forma digna, o mais dignamente possível.
Não é fotojornalismo, se eu tiver de fotografar a miséria eu vou tentar
encontrar um lado digno e humano.” És um
humanista, então? “Sou mesmo muito. Sou uma pessoa muito sensível e acho
que consigo transmitir isso às pessoas, que de uma forma ou de outra acabam por
baixar a guarda.” E o teu retrato? O que
usas no perfil de facebook, feito pelo Filipe Alves da Silverbox, retrata-te? “Sim, gosto dos dois. Há um que tenho o
rosto para baixo e outro que estou de perfil. Gosto, porque tem uma certa
crueza na imagem, e cada vez mais é o que eu sinto que tenho vontade de fazer
quando retrato as pessoas. Claro que vou respeitar a pessoa retratada, não
quero que ninguém apareça mal ou que não goste de se ver na imagem, mas quero
que haja sempre uma certa crueza. Porque cada vez mais, por influência da
fotografia de moda, as fotos são muito retocadas, toda a gente fica
pós-produzida e eu não gosto disso. Mas também tem a ver com o exercício de
auto-aceitação, que eu como toda a gente, tenho problemas de auto-aceitação e
sou muito crítico em relação ao que eu faço.” Uma das coisas que gosto nos teus retratos é a visão dos poros da pele,
que todos temos, mas que até os filtros maquilhadores do Instagram tiram. Achas que isso vai mudar, essa uniformização das
pessoas? “Eu acho que sim, que se irá inverter, porque gera tanta ansiedade
as pessoas quererem ser perfeitas e protegidas, que irão deixar de aguentar. As
pessoas terão de voltar a interagir com a sua realidade.”
Futuro heróico
Um
homem humanista e sonhador, tão preocupado com a dignidade humana, como o
Herberto merece a million dollar question:
És optimista em relação ao futuro?
“Sou. Parece muito óbvio, mas não está na moda ser optimista. Mas eu não
consigo estar de outra maneira. É claro que tenho momentos em que me sinto mais
perdido ou meio deprimido, mas não gosto de estar nesse estado e arranjo sempre
formas de dar a volta. O que me move é a esperança de um dia melhor.” E tens heróis? “Eu também questiono
muitas vezes. Eu nunca fiz muito o culto de personalidades, nunca segui
ninguém. Tenho muitas referências, leio muito, mas para mim os heróis são as
pessoas que vou encontrando no dia a dia e que lidam com os problemas reais.
Não são as pessoas do facebook mas as pessoas que vou encontrando na rua, que
me inspiram. Desde a minha família, a outras que vou conhecendo ao longo do
percurso. E também temos que nos lembrar que as histórias das pessoas que só
vemos nas revistas, ou na televisão, são histórias editadas, nunca sabes como é
que as coisas são mesmo.” Mas falta o
heróico sobre o fã? “A nossa sociedade tem um processo de fã, muito rápido,
cada vez mais mediático, mas é muito virtual porque hoje em dia as pessoas já
não perdem tempo para trabalhar uma coisa. O sucesso quer-se imediato, querem
que as coisas aconteçam logo a seguir e eu não acredito muito nisso. Até para
perceberes melhor as referências que tenho vou mandar-te um link
com o histórico dos livros que tenho lido.” E tu também és herói, ou cometes actos heróicos? “Sim, eu sou o meu
maior herói. Reconheço isso em mim, ainda hoje li uma citação do Joseph Campbell que dizia mais ou menos isso. A tua missão é
trabalhares para ti próprio, e se fizeres isso bem, isso transmite-se aos
outros. A minha missão não é salvar o mundo mas é salvar-me a mim próprio, da
melhor maneira possível, e contagiar os outros durante esse percurso.” Mas as pessoas podem ser heróis, sendo
egoístas? “Eu acredito que sim. Tomando-me como referência, é mais difícil
ajudar os outros se eu não me conhecer a mim próprio, e esse caminho e as
coisas que vou fazendo. É preciso haver uma generosidade, também, e não ser
demasiado narcisista, as coisas que faço têm a ver com auto-descoberta, e serei
muito mais útil aos outros a partir do momento em que me descobrir melhor.”
Boas e más
histórias
Como
o Herberto está sempre a falar de histórias, decidi perguntar-lhe: Se há boas,
também há más histórias. O que é para ti
uma boa história? “Acho que as minhas referências vão sempre dar ao Joseph Campbell. Tem a ver com a jornada
do herói, com histórias que inspirem, para mim têm que inspirar de alguma
maneira. Numa boa história, há sempre uma lição. Há uma parte interessante,
quando lês uma história, que tem a ver com a psicologia, o teu cérebro a determinada altura, se a história
for boa, não distingue se tu viveste aquela experiência ou não. Quando lês uma
boa história, a partir do momento que estás envolvido é como se estivesses a
vivê-la, é como se estivesses lá dentro. Assim podes ter uma lição de vida, sem
teres vivido de facto a experiência. Basta leres para aprenderes. Mesmo se for
uma história macabra, se um dia te deparares com aquela situação, o teu cérebro
já aprendeu a lidar com aquilo, mais facilmente encontra uma solução.” E quando estás a retratar, também aprendes
lições com essas histórias? “De certa forma sim, eu sinto essa
identificação. Há sempre um respeito quando retrato as pessoas, há sempre um
lado estético. E sobre a natureza humana, ultimamente há um tema que me tem
interessado, que tem a ver com estereótipos e ideias pré-concebidas que todos
temos. Há uns dias fui a uma apresentação sobre psicologia social no ISCTE e
havia um caso que falava sobre os estereótipos, que irão sempre existir. O
estudo apresentado era sobre polícias, e a conclusão é que numa situação de
perigo, em video-jogos, o número de vezes que se disparava sobre indivíduos de
raça negra era bastante superior. No caso dos polícias não, porque eram pessoas
já com o cérebro treinado.” Mas achas
que tem a ver com minorias? Ou seja, em África as cores estariam ao contrário?
“Talvez. Mas também tem a ver com a experiência histórica, é muito diferente
porque não existe esse complexo de superioridade. Os estereótipos básicos mantêm-se,
o indivíduo negro é atlético, perigoso e é pobre. Há sempre uma ideia eminente
de perigo.” Mas e em Portugal, a cultura
negra insiste em não vir ao de cima? “Acho que há falta, e ainda mais das
histórias contadas pelos próprios. O meu interesse não tem só a ver com a
história de África, mas também com a diáspora, com as pessoas deslocadas do seu
país de origem. Falta a visão e a experiência dos próprios a relatarem as
coisas. Tem a ver com a educação, é esse processo que comecei agora a
desenvolver no meu blog, são coisas que me vão inspirando e que provavelmente
darão uma exposição. E senti essa necessidade porque os homens de origem
africana são pouco fotografados, ou quando o são é sempre da mesma maneira com
o esterótipo. Por isso tenho fotografado essencialmente o rosto e o olhar, e o
que me tem perturbado é essa apatia da comunidade africana ou afro-descendente.
As pessoas não se juntam, não se agregam e fazem coisas. Por isso tenho me
proposto às pessoas e às suas ideias, com os meus skills para ajudar a comunicar a essas ideias, como a associação
que fiz agora com a Rádio
Afrolis.” Tens essa preocupação com
os teus filhos, de lhes contares histórias do teu passado? “Sim, falo um
pouco.” Então partilha lá a fantástica história
do teu nome. “A história do Smith é uma história muito gira. Algures no
século XIX, estavam a instalar os cabos marítimos de comunicação em São Tomé.
Os ingleses levaram com eles dois técnicos negros da Serra Leoa, um deles era
um tal de Johnson Smith, que
enquanto esteve em São Tomé conheceu uma linda são-tomense. O fruto dessa
relação foi a minha avó, e é daí que vem o nome Smith da minha família.” Então mantiveste o nome da tua avó?
“Sim, o meu nome é Herberto Helder Santiago Smith Lima, mas por fins artísticos
e por haver um realizador da SIC chamado Ediberto Lima, adoptei o
nome Herberto Smith. Já te lembras da tal boa história que te inspirou? O
Herberto pediu um tempo, e eu sei que assim que ele se lembrar me vai contar
essa tal boa história. Pelo menos fica a desculpa para mais um café.
Deixa-me ai uma
pergunta para a próxima conversa…
O que é que te move?
Observação:
Esta entrevista foi realizada na esplanada
da Rés Vés Gelataria, em Campo de Ourique a 4 de Junho de 2014.
Foto de Pierre Gonnord. Publicado no site da Umbigo Magazine
0 comentários:
Enviar um comentário