Num dia de temporal, na nossa cidade de Lisboa, foi ao Principe Real que nos dirigimos. Ao encontro, no meio da rua, seguiu-se a entrada num dos locais mais cinematográficos da cidade, a Embaixada. O meu colega da escola de teatro, Miguel Loureiro sentou-se e num tom só seu entregou-se à personagem de entrevistado. Não minto, a minha admiração pela sua coerência é antiga e este encontro era inevitável. Peço desculpa, mas ao longo da conversa, isso nota-se e é real. Admiro este homem do teatro.
Mas quem é este tipo?
Miguel Loureiro é um actor/encenador/dramaturgo com 44 anos, nascido em Lourenço Marques, Moçambique, criado em Cascais e habitante de zonas de Lisboa. Tem uma companhia de teatro chamada 3/quartos, e intitula-se a si próprio um actor de reportório. Estudou no IFICT e na ESTC e é tradicionalista para além de católico apostólico romano. Ao mundo, organiza-o em categorias e em infindáveis listas de cadernos e de notas. Muito conhecido no meio do teatro, estreou-se como dramaturgo em 2012 com Pergunta a Duquesa ao Criado.
Facebook
No dia em que o facebook fez dez anos, encontrei-me com ele. Não podia deixar passar a ocasião e iniciei as perguntas ao Miguelinho Loureiro, nome do seu posicionamento facebookiano. O Miguelinho anota e comenta (Por trabalhar muito à secretária, e ter muito tempo, tem sempre a página aberta), e está sempre como um opinion maker ou como uma espécie de blogista a escrever para estimular os outros. Apesar de não acreditar muito nas ciências sociais, usa o facebook pelo seu lado deseducativo e provocatório. “O facebook vem de uma sociedade bastante leve e fútil como é a americana, e eu gosto de respeitar essa origem. É um sitio de uma certa irresponsabilidade, um sitio de brincadeira, apesar de que as coisas que ponho lá, serem sérias.”
Por seu lado, o Miguel Loureiro, adoraria programar um teatro, ele que até adora mais a parte teórica, do que a parte prática do mesmo. Mas como seria esse teu teatro? “Teria quatro ou cinco salas. Uma mais ligada ao texto, mais canónico, começando na época do texto que vai desde o Shakespeare ao Tchekov e depois as experiências de desconstrução do texto do século XX, e depois as escritas cénicas a partir do advento da performance. Outra sala estaria ligada às ideologias, como construir um objecto artístico a partir de uma ideia, a ideia de género, a ideia de família, a ideia de feminino, a ideia da paisagem ligada à performance-arte. Outra sala ligada aos cruzamentos e territórios, que nos anos 80 se chamavam contágios e agora se chamam multidisciplinares. Depois uma sala dedicada à análise metafísica da disciplina teatral, onde se fizessem peças ligadas ao discurso metafísico do teatro, em que o impulso pudesse vir de um aderecista em vez de um encenador, por exemplo, e onde se pudesse ver a fenomenologia teatral. A quinta sala dedicada a um teatro não eurocêntrico, à África, à Ásia, às formas mais periféricas, às formas animadas, aos infantis.” Nisto, o Miguel respondeu quase de um fôlego decorado e claramente muito refletido e organizado, quase como que num disparo-resposta à espera de um dedo-resposta no gatilho das suas ideias.
O Teatro está domesticado
O Miguel adora falar de teatro, não por paixão como diz logo, mas por lenta e rigorosa digestão intelectual. “O Teatro deveria ser sempre um local indomável, nunca domesticado, perigoso e agora é cada vez mais direitinho. Agora é isto, agora é aquilo. O teatro deveria voltar à altura da Pont Neuf parisiense, em que era feito por vigaristas, pela escumalha da sociedade, pelos que mataram o Marlowe numa taberna, que não servem para mais nada a não ser para se juntarem à noite, beberem uns copos e fazerem teatro.”
Um programa para o teatro
Assim tive de insistir no assunto da sua não paixão. E o que estaria no teu teatro?
“Para a sala do texto começamos pela fase ante-grega, com os fragmentos egípcios e fenícios ligados aos cultos dos mortos, aos discursos do dilúvio. Só aqui dava para programar uns 20 anos. Porque há que arriscar textos, desconhecidos primeiras versões nunca apresentados, todos os terrenos por desbravar. E haveria público? (Perguntei eu.) Isso é uma coisa que não saberia responder, é uma perspectiva egoísta, mas eu gosto de terrenos não habitados, que eu gostaria de ver. Mas esta é só a primeira fase depois íamos à fase do cumulativo de uma comunidade, a fase dos gregos. Depois o longo período da idade média, falsa idade das trevas, com textos sacro-santos, autos de paixão, clássicos da liturgia. O Miguel tem isto tão planeado, que não lhe embaraça expor o seu meta-objectivo. “Porque para muitos o teatro é um exercício de vaidade, interessam-se pouco pela história, e muito pela valorização da imagem pessoal.” A ligação, o conhecimento e o respeito do Miguel pela história e pela visão do teatro como arte quase que o aproximam do fenómeno do amor. Afastando-o da vã paixão individual, ao serviço de um teatro de sempre, e não só de hoje.
Convenções
Mas a conversa sobre o que há no teatro, continua. “Devia haver, o que há, mas devia haver pelo menos 5% de outras coisas. Não é tornar tudo acessível para os festivais europeus onde todos se copiam, e só fazem perguntas. Quando vemos que a onda se está a formar para um lado temos de combater a onda e fazer diferente.” Nisto o Miguel quase que demonstra um pensamento de esquerda.
;-)
Há um momento em que descobres o teu gosto pelo teatro? “Gosto de teatro porque é um sítio escuro. Comecei a gostar de teatro quando chego aos 8/9 anos e fui ver uma peça do TEC com a Fernanda Borsatti e a Maria Albergaria e os outros veteranos do TEC. Depois aos 14/15 anos vi o Galileu Galilei, também no TEC e estar ali no escuro, numa suspensão da realidade durante duas horas, sentes que fazes parte de outra coisa. Depois dessas experiências de ir ao teatro, comecei a ler coisas sobre teatro. A história e os dicionários do teatro que encontrei, os nomes, um tal de Artaud que se magoava a si e aos seus actores, fez-me entrar pela porta da teoria, a querer saber mais, um sentido monacal, uma ideia semelhante à entrega dos monges. Aderi ao teatro como transformador da sociedade.”
Aristocracia
Mas tu és ou não aristocrata? É um tema recorrente nas tuas intervenções e até nos títulos das tuas criações. “Isso é uma parte mais brincada. Mas da parte do meu pai havia latifundiários de Moçambique, e com a Quinta dos Loureiros em Viseu. Tive uma mamana, que me educou e por isso foi mais em Portugal que conheci os meus pais. Mas nessa altura iam fazer caçadas na Rodésia e noutros países e ao fim de semana íamos para a ilha da Inhaca de avião. Cheguei ao aeroporto de Lisboa num dia muito nublado e isso marcou-me. Mas rebelei-me muito contra esse saudosismo que havia em casa, nessa altura até era o vermelho lá de casa com ideias de esquerda. Mas os meus pais eram muito desligados e liberais, sempre segui o que quis. E quando estava na tropa fui sempre dos melhores, nas semanas de campo. Dei-me bem porque adoro autoridade e cumprir ordens e por isso dei-me muito bem. Estive no ramo de saúde e no Hospital Militar da Ajuda, onde era o secretário de um capitão gastrenterologista. Um dia vi um anúncio no Jornal Sete do curso de teatro do IFICT. Meti-me num táxi, mudei a farda numa tipografia, fiz as provas e voltei a tempo, sem ninguém no quartel descobrir nada.”
O Miguel é muito organizado, pedi-lhe que partilhasse o seu método legalista. “Sou um viciado em listas, desde os meus 20 anos que escrevo tudo. Tenho tudo apontado, é obsessivo quase de nível patológico. Não é um diário, mas tem o que devo vestir cada dia da semana, as cores, as texturas e os tipos de roupa. O mesmo com as comidas ou com os telefonemas aos amigos. Programo tudo por sistemas de 12 anos. O pequeno passado, as ideias que ficaram por fazer. Depois a organização, depois o futuro pessoal e o geral, do mundo e ao futuro como disciplina. Depois o amor, o amor a Deus, o amor erótico, o familiar, os objectos e o tempo e o espaço que amas (No seu caso o séc XVIII e o Magreb). Mesmo as minhas escolhas no teatro não têm a ver com as minhas paixões, ou impulsos, mas com este sistema. Os meus ensaios são sempre de quatro horas e dependem dos horários da época do ano. Com este sistema, posso programar o que vou fazer daqui a 20 ou 50 anos, se ainda estiver vivo.”
O Miguel reflectiu um pouco e respondeu. “Mad, bad and dangerous to know. Como no epíteto que se diz que alguém deu a Lord Byron. Ou o CV do escritor Alberto Pimenta que começa com nasceu (no ano tal) e ainda não morreu.”
Pergunta do João Moreira: Um restaurante bom e barato em Lisboa?
Cheguei à pergunta que tinha ficado da conversa anterior, e a resposta foi pronta. “Há um na Rua da Quintinha, que é um restaurante caseiro com quatro mesinhas, um restaurante de uma senhora, com o frigorifico dela, uns santinhos e uns vasos com fetos à entrada. Chama-se Volta Aqui, e é um restaurante muito pequenino. Normalmente vão lá os deputados da assembleia, tem comida boa, portuguesa, carnucha bem feita e peixe. E eu acho que ele vai gostar.”
Lancei-lhe um desafio
Deixa-me uma pergunta para o próximo artista. Mas tem de ser uma pergunta artística? Não. Pausa. É possível ter um comboio privado? Se é possível, a pessoas com posses, terem jactos privados, porque não podem ter comboios privados? Eu posso comprar um comboio, mas em que linhas em que o meu comboio pode andar? Há figuras de estado que têm comboios particulares, um burguês enriquecido ou um aristocrata que queira ter um comboio particular, pode?” Ainda perguntei duas vezes, mas já tinha a certeza de ser a mais original dos próximos tempos.
Vai estar no Porto, como actor, com o espectáculo de Renata Portas, a partir de La Scène de Valère Nouvarina. Depois vai encenar duas peças de género Grand Guignol “Peças de horror e de sangue, histórias simples como a de um que homem é mordido por um cão com raiva e depois o seu desepero dele até morrer. Um ourives que acolhe em casa um assassino, sem o saber. Histórias góticas de portas, facas e sangue.” Em junho no Espaço da Ribeira da companhia Primeiros Sintomas. Também está a escrever a sua segunda peça de teatro, Delírio em Abu Simbel, que conta de como um grupo de turistas fica fechado no seu quarto e não consegue sair.
Observação:
Despedimo-nos com o Miguel a lembrar que tinha de ir para casa organizar coisas, caixotes com livros, roupas e não sei quê…
Agradecimentos ao Café Embaixada pelo cenário e pelo conforto dos seus sofás, um excelente local para entrevistas e conversas, aconselho :-)
Esta entrevista foi realizada no dia 4 de Fevereiro de 2014, foto de Pedro Filipe Marques
Esta entrevista foi realizada no dia 4 de Fevereiro de 2014, foto de Pedro Filipe Marques
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