Conversa com Vicente Alves do Ó



“Uma história de amor com fim feliz, não tem interesse”

Conheci o Vicente num debate sobre cinema na Baixa-Chiado PT Bluestation. A minha ideia era nenhuma ou quase nenhuma sobre o seu trabalho. Como era redator dessa conversa de realizadores, fui obrigado a ouvir tudo com tanta atenção que reparei que o Vicente não tem um discurso estratégico previsível. E se isso não vos deixa curiosos, a mim deixou. Este tipo parece que diz mesmo o que pensa, que adora o que faz e que quer ter um lugar na história. Por coincidência é realizador e português. Vou já entrevistá-lo, decidi. Um ano e meio depois, aconteceu. Ele aceitou logo, eu é que andei a fazer outras coisas.


Mas quem é este tipo?
O Vicente Alves do Ó é um argumentista, mas também é um realizador. Nasceu em Setúbal mas passou a infância em Sines. Escreve argumentos para filmes e para televisão. Como argumentista começou naquela série de telefilmes feitos pela SIC em 2000, com Monsanto e Facas e Anjos. Como realizador começou com a curta Entre o Desejo e o Destino em 2005. Em 2011, realizou a sua primeira longa-metragem Quinze Pontos na Alma, mas deu mesmo que falar foi em 2012 com a segunda, Florbela. Filme com sucesso nos cinemas, nos festivais e na mini-série de 3 episódios que passou na RTP. Publicou um primeiro romance Marilyn à Beira Mar, e está quase quase a editar o segundo.

Aviso já que a conversa foi longa e pior que isso, interessante. Não digam que não escrevi um aviso ;-)

Consegues imaginar-te sem escrever?
“Não. Era impossível. Tenho fases em que me revolto contra isto tudo, contra as palavras e acho que é tudo uma merda e não serve para nada, e eu sou um bluff, e que o que tou p’aqui a fazer. Tenho aquele sonho delicioso de ser pastor e de ir para o meio do Alentejo, de ser apenas poeta. Pumba! Palavras! Já estraguei tudo, já tou a pensar no livro de poemas que vou escrever.” Mas alguma vez te faltou uma palavra, como é que resolves isso? “Acontece-me muito é a minha mente ir tão depressa, que a mão não acompanha. E quando acho que já escrevi tudo e começo a reler, aquilo tá aos soluços, faltam palavras no meio das frases, e tenho que me tar a lembrar que palavra é que eu pensei ali e que não tá. Porque vê-se claramente que eu pensei numa palavra e que não a escrevi. Tenho de fazer um trabalho de arqueologia mental.”

A primeira vez em que foste escritor?
“Eu devia andar no 2º ano do ciclo preparatório. Tinha uma professora de português que era muito fixe e que inventou uma forma de despertar a vontade de escrever. A ideia era contar uma história a várias mãos ( neste caso, a turma toda) onde cada aluno continuava uma história lançada pelo anterior num caserno que rodava por todos – no máximo cada um podia escrever duas páginas. E acontecia que alguns colegas meus que não tinham paciência, gosto ou vontade para escrever, e pediam-me para escrever por eles. Claro que era apanhado porque ela conhecia a minha caligrafia.” Lembraste do que era? “Nisso não, mas lembro-me de ter um caderno em que imaginava a vida de um homem (era e ainda sou fascinado pelo tempo). Imaginava o futuro dele e escrevia aquilo como hoje estruturo um filme. Tipo escaleta. Uma espécie de biografia de futuro. Construía a vida dum homem a partir do presente para o futuro, inventando os acontecimentos que iriam acontecer, os filhos, avançando na história familiar e do mundo. A coisa chegava a ter cadernos e cadernos. Chegava a contar as aventuras daquela gente até 2500, como se pudesse imaginar o futuro.

As mulheres
“Tive uma infância possível. Nasci em Setúbal mas vivi a vida toda em Sines. Cresci com a minha mãe, apesar de ter os meus irmãos por perto, e a sombra do meu pai, que era gigante, mas em última análise as mulheres que foram passando pela minha vida sempre foram mais interessantes do que os homens. Sou muito justo na apreciação, nunca tomo partidos por elas ou por eles, mas cresci sempre com mulheres muito mais interessantes, mesmo a nível intelectual, do que homens. Os homens que estavam à minha volta ficavam sempre aquém daquilo que eu achava que eles podiam ser, enquanto que elas com o pouco que tinham, brilhavam muito mais e trabalhavam muito mais e eram muito mais. Mas isso tem a ver com uma frustração enorme minha de querer encontrar neles uma father figure que não encontrava e isso irritava-me imenso. Aí se calhar exigia-lhes mais. No ecrã aprecio muito mais as mulheres, as personagens femininas são sempre mais interessantes, porque as mulheres são sempre mais imprevisíveis do que os homens. Do ponto de vista de escritor elas são muito mais interessantes. Tira as loiras dos filmes do Hitchcock e a cinematografia dele morre, no caso de um John Ford já não, no Tchekov já são elas mas no Shakespeare não. Dava um estudo interessante, como é que os criadores tomam essa opção, é só um sinal dos tempos? É um sinal da sociedade? É uma escolha pessoal?”

Mãe
“Eu tive a presença de uma mãe que apesar de ser uma personagem fascinante, não era uma personagem omnipresente, controladora, esmagadora. Nunca tive uma obsessão pela minha mãe. Eu era fascinado é como espectador dela, como se estivesse a olhar para um ecrã, o que ela fazia, dizia, o que ela tinha vivido.” Foi então por isso que escreveste um romance sobre a história de amor entre a tua mãe e o teu pai? “Houve coisas que ela me contou, mas houve coisas que ela nunca me contou, e que eu soube à volta dela.” Mas é uma história de amor com fim feliz? “Claro que não, se for com fim feliz não tem interesse nenhum. Uma história de amor com fim feliz, não tem interesse. Eu tenho 40 anos e já percebi isso.”

Tens um blog chamado Desejo e Destino, és romântico?
“Sou profundamente romântico, sou essas coisas todas.” Mas não acreditas em finais felizes? “É mais interessante do ponto de vista dramático, é sempre mais interessante, sabes porquê? Acho que o amor não tem de ser vendido como um apartamento modelo. Temos de ter essa percepção, da sorte que se tem, quando se vive o amor assim. Como tal, tens imensas histórias em que as coisas acabam bem, mas na ficção,  são poucas as que ficam na memória. Tem a ver com a tua condição, a tua condição é morrer, tudo tem um fim… (aqui fez uma pausa expressiva e até dramática.) Tou um bocado… isto é da falta do tabaco! (o Vicente parou de fumar à duas semanas.)”

O que é um actor?
De uma forma muito simples, o actor é uma continuação de mim, todos os actores com quem trabalho são uma continuação de mim, por isso é que eu gosto de trabalhar com eles, quando estou a trabalhar com eles, estou a trabalhar comigo.” Então gostas de ti? “Gosto de trabalhar comigo, nisso sou muito pouco português, tenho uma costela alemã muito forte, porque gosto de trabalhar. Eu sei que sou bom a trabalhar, dedico-me, aplico-me, estudo e preparo-me, e ai de quem apareça e saiba mais do assunto que eu. Trato logo de ficar a saber mais do que ele, não por uma questão de competição, mas enquanto eu não dominar esse assunto, não vou descansar. Sou demasiado exigente comigo e nem sempre isso é bom.

Propus-lhe um exercício, muito egoísta, dada a minha fraca bibliografia cinéfila: um nome de um realizador e um título de um filme, que me marcaram a mim e tive a sorte do Vicente conhecer e opinar sobre todos eles:

Billie Wilder / O Apartamento
“É um génio. Dos génios não é preciso explicar, se tens de explicar um génio não é um génio. Acho que estas pessoas como o Billie Wilder e mais alguns, têm de ter forçosamente essa característica, que eu acho que é fundamental e que a actual classe artística matou completamente, a arte e a grande arte não podem viver sem mistério e sem transcendência, seja no objecto em si ou na pessoa que a cria. Ele está nesse nível, porque ele é de uma humanidade, tem um olhar, que mesmo sendo corrosivo, irónico e até um bocadinho negro, continua a acreditar no mundo e nas pessoas. Escreve maravilhosamente bem, e a câmara nele nem é o mais importante, porque o que está à frente da câmara é tão bom…”

Jacques Tati / O Meu Tio
“Gosto imenso do Jacques Tati também.” É diferente do Wilder… “Pelo menos porque aparentemente não tem palavras, mas aqueles argumentos devem estar escritos ao detalhe. Há pessoal que tem essa ideia, há quem ache que aquilo era tudo improvisado, que lhes caía um projector na cabeça e tinham uma ideia. Era tão bom desmanchar essa ideia. Deixa-me lá pensar numa coisa bonita sobre ele… ele vive na eternidade, daqui a 500 anos aquilo continuará a ser visto e sentido, tenho a certeza.

Lars Von Trier
“Não há paciência...”
Dogville
“Ah, espera. Confesso que acho o Lars Von Trier execrável, um oportunista. A forma como ele filma está na câmara, as câmaras são coisas muito objectivas, são máquinas dirigidas sobre alguém. Rio-me sempre da ideia de filmar a realidade, porque a câmara manipula. O Lars é do pior que há, o Bergman topou-o logo e nem o quis conhecer. Mas neste marasmo europeu, em que tudo é muito fraquinho,  ele tem coisas em que ele sai para a estratosfera. O Dogville, e o dispositivo que ele inventa para contar aquela história é absolutamente brilhante. Como ele usa o som. Agora, o que se passa lá dentro, o drama da mulherzita, não interessa nada, mas o dispositivo imagético é brilhante.”

Wes Andersen / Um Peixe Fora de Água
“Odeio. Para ver coisas do Wes Andersen vou à Eurodisney, aquilo é infantil. pomposo, aquele homem é um bluff tão grande, é um bluff com dinheiro. Mas se perguntares o que eu acho dos Tenenbaums, adoro.” Qual é a diferença? “A diferença é que aí é um adulto a olhar para a infância, e no que fez a seguir, é um adulto a fazer de conta que é uma criança. É essa diferença, que não suporto.”

Tenho que te perguntar, se achas que existe, de facto, um cinema português ou apenas um cinema feito em Portugal?
“Há algo que os une a todos, mais não seja, a maior parte dos realizadores que recebem subsídios do estado, foram todos formados na mesma escola. Se não trazem a mesma linguagem, foram todos martelados no mesmo sentido. Mas essa  é uma conversa tão ou mais irritante e antiga, que um dinossauro do Museu de História Natural.  Aquilo que é ou pode ser um cinema português são as ideias que o congregam e não uma questão de forma ou linguagem. A ideia de linguagem como definição de uma cinematografia parece-me pobre e rebuscada, sendo que a linguagem e a forma resulta muitas vezes de modas, trejeitos e que facilmente são copiadas. O interior dos filmes pode, sim, dar a entender essa ideia de conjunto. Em Portugal existe essa ideia de cinematografia para justificar um estilo e um gosto e isso é muito preocupante porque não abre a possibilidade a mais nada –  nem à liberdade de criar novos caminhos ou encontrar outras vozes. Portanto, a mim, interessa-me muito mais que se faça muito cinema em Portugal, sem esse peso ou selo do que é ser cinema português.

Uma pergunta que fica para o próximo artista
Voltei a pedir uma pergunta para a próxima conversa, com a ideia que é uma pergunta para um artista. O que é que achas do Teatro Praga? Não, pergunta antes o que é que achaste da borla que o pessoal andou a fazer no Teatro da Cornucópia?

Onde podem ver o Vicente Alves do Ó?
Pelo Chiado a apanhar sol, depois de ter terminado o seu segundo romance, que diz ser inspirado na primeira versão do guião para o filme Florbela. Em jantares de amigos e sempre em comentários corrosivamente humanistas no facebook.

Observação:
O Vicente fumou o cigarro que lhe ofereci no final da nossa conversa gravada, as partes que não ficaram gravadas, também vos posso garantir que creditam a sinceridade deste tipo, mas isso fica só para mim e para quem o conhece ou venha a conhecer no futuro, vale a pena, acreditem.

Agradecimentos ao Café Vertigo, e ao meu amigo Luís Coelho, que me tem deixado fazer do seu espaço a minha segunda casa e escritório.

Esta entrevista foi realizada no dia 17 de Abril de 2014, foto de Patrícia Andrade.


0 comentários:

Enviar um comentário

 

escritor de personagens

Pedro Saavedra é um sonhaador com dois aa. É um artista que escreve, representa, pensa e programa como alguém que gosta (sempre) de acordar todos os dias. Formado pela ESTC, já foi actor, escritor, professor, encenador e programador. Foi professor de expressão dramática durante 5 anos. Foi director artístico, de uma companhia de teatro na cidade da amadora, durante 8 anos. E foi programador, de uma estação de metro no centro de Lisboa durante um ano. Actor em novelas, séries e filmes, também faz locuções, mas só ficou famoso uma vez por dizer na televisão: Este canal acaba de ser comprado pelo Sr.Nuno Cabral de Montalegre e a partir deste momento só passará folclore transmontano.

aprendeu com

Eusébio Paulino, Paulo Barcelos, João Mota, Glicínia Quartim, Glória de Matos, Anna Paula, Rui Mendes, Duarte Ivo Cruz, Paulo Morais, Eugénia Vasques, Valentim Lemos, Kot-Kotecki, Alexandre de Sousa, Águeda Sena, Natália de Matos, José Pedro Caiado, Fernanda Lapa, Filipe Crawford, Carlos J. Pessoa, Armando Nascimento Rosa, Abel Neves, Luca Aprea, Maria João Serrão, José Peixoto, Eimuntas Necrosius e Nuno Carinhas.

trabalhou com

Carla Chambel, Joaquim Benite, António Assunção, Luís Vicente, Teresa Gafeira, João Mota, Álvaro Correia, Carlos Paulo, Pedro Alvarez-Ossorio, Vlado Repnik, Robert Klancnik, Igor Stromajer, Joana Brandão, Joana Seixas, Margarida Cardeal, Pedro Matos, Gonçalo Portela, Vladimiro Guerreiro, Ana Cloe, Pedro Gil, Susana Arrais, Ana Costa, Ricardo Mendes, Alberto Quaresma, Miguel Damião, Rui Unas, Inês Castelo Branco, Dânia Neto, Sandra Faleiro, Ian Veloza, António Cordeiro, Tiago Guedes, Juvenal Garcês, Pedro Luzindro, Ricardo Cruz, Luciano Burgos, Martin Joab, Paulo Patraquim, Cristina Basílio, Alexandra Sargento, Ana Guiomar, Rogério Jacques, Frederico Amaral, Adriana Moniz, Lucília Raimundo, Tomé Quirino, José Pais, Rui Melo, Rui de Sá, Henrique Câmara Pina, Francisco Baptista, Márcia Leal, Toninho Neto, Joana Cruz, Susana Romana, Fernando Alvim, Rui Miguel Pereira, Miguel Valverde, Joaquim Leitão, Ema Cerveira, Miguel Bica e Tiago Sigorelho, entre outros.