Lê-se Tenguenére e é o nome que a história de amor, passada em Paris na segunda guerra mundial, entre uma pintora sueca e um médico português, deixou de herança à Mariana. Uma bailarina, performer, coreógrafa e atriz de Famalicão, com trinta anos, que desde pequena gosta de vestir roupas e personagens, seja para dançar, estudar, criar ou talvez até para um dia ir às finanças. Mariana sempre se sentiu diferente dos outros mas muito à vontade nos palcos para ser as muitas outras pessoas que habitam o seu corpo.
Chiado
Marcámos encontro no bar vazio do Teatro Rápido em Lisboa, cerca de três da tarde, num dia de Novembro com vinte graus de máxima. Já nos tínhamos encontrado no dia anterior onde, de óculos escuros, só tínhamos falado daquele estilo de coisas de artista, eu fiz isto, tu fizeste aquilo, os outros andam a fazer aqueloutro. Mas eu achei que era importante isto ser mesmo uma conversa, e para haver conversa tem de haver memórias, e nisso sempre fui um artista.
Marcámos encontro no bar vazio do Teatro Rápido em Lisboa, cerca de três da tarde, num dia de Novembro com vinte graus de máxima. Já nos tínhamos encontrado no dia anterior onde, de óculos escuros, só tínhamos falado daquele estilo de coisas de artista, eu fiz isto, tu fizeste aquilo, os outros andam a fazer aqueloutro. Mas eu achei que era importante isto ser mesmo uma conversa, e para haver conversa tem de haver memórias, e nisso sempre fui um artista.
A Mariana, essa, vinha vestida de forma tão diferente nestes dois dias, que nem a ia reconhecendo e a primeira coisa que falámos a subir as escadas rolantes foi sobre os Daft Punk lembrarem os Supertramp, teoria minha, não dela, sobre os temas épicos da música dos anos oitenta. Chegados ao local, eu e a Mariana não nos sentámos enquanto não tivemos um cinzeiro vazio no centro da nossa mesa. Cada um na sua cadeira, casacos nas costas, tabaco à mão de semear, gravador no rec, e começava a primeira conversa do “Café dos Artistas”.
Começámos por falar das suas origens, que são no mínimo românticas. Entusiasmada, falou-me de uma família de artistas, músicos e arquitetos, com as artes sempre presentes na sua infância. Estudou piano com a mãe, mas quando lhe perguntaram se preferia o piano ou a dança, escolheu a dança, mas ainda experimentou flauta transversal com o pai, até chegar à fase de ser singer e songwriter de uma banda de garagem com o nome Dust Brooms. Só desistiu dessa banda quando, perante uma proposta para um concerto patrocinado por uma marca comercial, questionou os seus ideais artísticos.
Personagens
A Mariana sempre fez personagens, um pouco como eu e todos os outros artistas, mas ela até chegou a inventar uma catequese fictícia onde ia a fingir, só para poder falar com os colegas de escola na segunda-feira seguinte. Numa família quase toda agnóstica, as dolorosas igrejas de Famalicão sempre lhe fizeram impressão, mas como todos iam à catequese ela também tinha de ter uma, nem que fosse inventada. Aqui convém dizer que eu, Pedro Saavedra, fiz a primeira comunhão, mas desde essa altura que não voltei a provar o corpo de Cristo.
Mariana sempre se sentiu uma outsider, vestia-se sempre de uma forma original, até com roupas da avó, e nunca se integrava muito em grupos, apesar de ser conhecida pelos seus amigos como “Mãezinha” (tem de ser lido com pronúncia do norte, ou se preferirem da zona de Famalicão), e ter tendência a criar sempre novos projetos criativos dentro e fora da escola. No liceu, estudou as ciências naturais sem dificuldade, sonhando ir para a Amazónia salvar animais. Mas, mesmo aí, ia inventando dança e improvisações com um grupo de amigas, encarnando personagens até para estudar biologia, mas nunca pensando em virem a ser bailarinas profissionais, até porque para isso teriam de ter andado no conservatório desde pequenas, pensava ela. Nesta altura voltei a 1992, cinema Babilónia, sentado a ver o filme Os Últimos dias no Paraíso com o Sean Connery e a imaginar-me um botânico de rabo de cavalo na Amazónia.
Loose your self to dance ;-)
Foram vários os eventos, que me fizeram a mim e à Mariana trocar a biologia pela dança, mas o encontro dela com o John Carney, importante bailarino inglês, num workshop no Porto, e a sua sugestão, durante um intervalo, de que deveria seguir dança fez com que, em conjunto com uma amiga, esperasse terminar o liceu e enviar um solo numa cassete VHS para concorrerem à Northern School of Contemporary Dance de Leeds. Sem imaginar que tal poderia iria acontecer, foi aceite. E pela primeira vez saiu de casa para ir para Inglaterra, feliz por saber que iria dançar todos os dias, até cair para o lado, como descobriu depois. Felizmente a minha dança era o teatro e a minha viagem foi só para o Bairro Alto em Lisboa.
Leeds, United Kigdom
Em Leeds, a Mariana, esteve 8 anos. Três na escola de dança, que fica num bairro de emigrantes asiáticos e africanos, tipo Martim Moniz, mas dez vezes maior. Na escola trabalhou muito e lembra-se sobretudo de viver uma semana num dia e do auditório ser dentro de uma sinagoga. Andando entre Inglaterra e Portugal, manteve a base em Leeds. Trabalhou em bares, foi go-go dancer, mas esteve sempre a criar projetos e até interveio em projetos comunitários com a companhia de dança que criou com outros colegas. Apesar da escola ser num bairro difícil com gente de todo o mundo, a Mariana sentiu-se em casa e lá nunca se sentiu uma outsider. Como eu compreendo a Mariana.
Onde fica o teu país?
Todos os artistas têm fases em que se cansam, e houve um momento que, em termos criativos, a Mariana também se cansou. Vários elementos da sua companhia sairam e os projetos em Inglaterra começaram a ser repensados. Veio a Portugal, com vontade de experimentar coisas mais plásticas e teatrais que pudesse explorar, fazendo todos os workshops e audições que encontrasse. Acabou por ser escolhida pelo seu lado teatral, diz, pelo coreógrafo Rui Horta para uma peça chamada Pure, onde era a mais nova e menos experiente. Ficou nesse projeto e outros começaram a aparecer, começando a dividir o seu tempo entre Portugal e a Inglaterra. Conheceu Vera Mantero, nessa altura, que tinha um trabalho que era mesmo aquilo que ela procurava e que lhe sugeriu o curso do Fórum Dança. Ao mesmo tempo, foi convidada para dar aulas na escola de Leeds e viu-se dividida entre uma situação confortavelmente previsível e o entusiasmo de experimentar coisas novas. Aqui, acho que o romantismo e a emoção da Mariana, lhe compraram um bilhete de ida para o seu país, que agora se chamava novamente Portugal, felizmente para nós, portugueses, opino eu.
Base
Entre cigarros e coreografias manuais com o isqueiro, ou ocasionalmente com a caneta que lhe emprestei, a Mariana relaxou quando lhe perguntei pela Eira. A partir do curso do Fórum Dança conheceu o professor, e agora amigo e cúmplice, Francisco Camacho, empatia à primeira vista diz, e o coletivo Eira, entrou na sua vida. Local onde tem baseado e produzido os seus trabalhos e de onde se destaca o “The Trap”, estreado no Circular Festival em 2012, e vencedor do prémio do público do Impulstanz-Festival Internacional de Dança de Viena. Leram bem, prémio do público, ou maior número de likes internacionais, se preferirem.
Mas que tipo de artista é a Mariana Tengner Barros?
A Mariana pensa, faz e respira dança, não porque quer mas porque tem de dançar para se sentir viva. E só se chama dança porque lhe vem do corpo como uma chama para uma nova dimensão anatómica e espiritual que a coloca em contato com as coisas que Mariana sente. A Mariana, até a falar dança com as mãos, fazendo coreografias com um isqueiro, fazendo da conversa um teatro para as ideias. A Mariana gosta de provocar e baralhar os outros, está nos palcos sem pudor, e coloca a sua imagem, e corpo de mulher, ao serviço de ideias para um mundo diferente. Um mundo em que cada um não tem apenas um papel, mas muitos. Admito que sorri muito ao ouvir-lhe estas coisas J
Lancei-lhe um desafio
A Mariana gosta de desafios, por isso terminei a conversa, lançando-lhe um desafio. Deixa-me uma pergunta, pedi-lhe, para o próximo convidado que ainda não sei quem é, mas sei que será um artista, e português. A Mariana recuou na cadeira, lançou-se na expressão da dúvida, rodou umas três ou quatro vezes o isqueiro, mas aceitou o peso da responsabilidade, respondendo: Quem admiras, e porquê? Acho que é importante saber quem é que um artista admira e em quem é que se inspira, acrescentou. Agora, vamos ter de esperar pela resposta à pergunta da Mariana na próxima conversa.
Observação: No final, o cinzeiro tinha cerca de 10 cigarros apagados, e eu tinha a clara impressão que a Mariana gostou de falar com o Pedro e o Pedro com a Mariana. Os artistas têm de falar, uns com os outros, mais vezes. Foi a conclusão mútua destes dois artistas que gostam de falar.
Onde podem ver a Mariana Tengner Barros?
No CCB, próximo dia 13 e 14 de Dezembro, no espetáculo A POWER BALLAD, em parceria com o coreógrafo norte-americano Mark Tompkins. A Mariana diz que, por acaso, vai usar roupas da avó sueca neste espetáculo inspirado pelo mundo artístico do cabaré burlesco e do “old glamour”. E com ainda maior inspiração em Tempest Storm, a artista de cabaret burlesco mais velha do mundo, que aos 83 anos continua a atuar, sendo idolatrada por alguns e objecto de repulsa para muitos. Eu vou, e vocês, não ficaram com vontade de ir?
PS: Agradecimentos ao Teatro Rápido e ao Ruy Malheiro que nos arranjou um cinzeiro para esta conversa.
Esta entrevista foi realizada no dia 13 de Novembro de 2013, foto de Rui Aguiar. Foi publicada na revista DIF, número 101.
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