A
princípio a ideia pareceu parva, falar com a Carla é um hábito que tenho desde
os 15 anos, (Sim, conhecemo-nos desde essa altura.) Mas escrever sobre o que
ela pensa, perguntar coisas que acho serem importantes ela dizer, fizeram-me
lançar a ideia. Naturalmente, ela aceitou e ainda bem. Conheci a Carla no dia
de apresentação do nosso 10º ano na Secundária da Falagueira, fomos namorados
durante 7 anos e ambos decidimos, ao mesmo tempo, aceitar o teatro como a nossa
vida, largando as ciências, as matemáticas e as químicas. Ela como actriz, eu
como dramaturgo, era essa a ideia pelo menos, desde 1991 que conversamos sobre
teatro, e nem sempre concordamos, mas arranjamos sempre desculpas para fazermos
coisas juntos. Esta é só mais uma.
Mas quem é esta tipa?
A
Carla é a melhor actriz da sua geração, nunca escondi essa minha opinião de que
ela iria fazer história como uma das melhores actrizes portuguesas. Simples,
profissional, de bom trato, honesta, coerente, nunca lhe ouvi um não redondo a
nenhuma proposta de trabalho. Estreou-se em 1995, com a Disputa de Marivaux, encenada pelo João Perry. Fez cinema, televisão,
anúncios, teatro, animações, locuções, workshops, direcção de actores, um grupo
de teatro sénior, de tudo um pouco, menos encenar. Em televisão ficou conhecida
pela sua participação em Jura e Vingança da SIC. No cinema a sua personagem
de inspectora Helena Tavares merecia
prémios, e no teatro tenho de destacar a História
de uma Gaivota e Gato que a Ensinou a Voar de Luís Sepúlveda encenada por Miguel
Seabra em 2002, quem viu não se esqueceu.
A borla da Cornucópia
Peço
a todos os entrevistados que deixem uma pergunta para o próximo convidado, esta
foi a que ficou do Vicente Alves do Ó. Ficou a pergunta, sem ele saber para
quem seria: A Companhia do Teatro da
Cornucópia lançou um pedido a actores para que trabalhassem gratuitamente,
o que achas da borla da Cornucópia?
“Eu já tinha lido a pergunta e pensei um bocadinho sobre isso, até tinha estado
à conversa com uma rapariga muito nova que está a fazer formação neste momento,
e que é muito cética sobre esse acontecimento. E eu não consigo ter logo uma
posição muito radical. Refleti sobre isso e o que me veio à cabeça, foram as
curtas metragens, feitas por alunos ou profissionais, para as quais me convidam
para trabalhar à borla. E dá-me ideia que a Cornucópia
decidiu fazer esse mesmo caminho, em troca de uma formação e de assistir aos
ensaios e ver o Luis Miguel Cintra
trabalhar, provavelmente eles acharam que isso era suficientemente rico e
motivador para quem fosse parar lá, reter algo em troca.”
Mas nas curtas-metragens ninguém ganha,
neste caso só os actores é que não eram pagos. “Então aí se calhar é uma má
gestão do financiamento, pelo que eu percebi a Cornucópia esteve para encerrar e não percebi se foi por falta de
subsídio ou má gestão, e isso é outra questão. Talvez as companhias financiadas
estejam habituadas a receber esse subsidio e não sentiram necessidade de lutar
por outras formas de financiamento. Mas para mim é muito difícil falar destes
aspectos dos financiamentos, na verdade nunca consegui entrar nesse assunto. Espectáculos à bilheteira? “Sim, já o
fiz. Se eu gostar do projecto e das pessoas que lá estão, e se daí não depender
o sustento da minha família, eu quererei fazer o projecto. Já me sucedeu fazer projectos
com essas directrizes, não havia financiamento, tens um texto, um grupo de
actores, ensaias fazes o espectáculo e no fim divides o que sobrou da
bilheteira.”
As memórias das personagens
A
Carla é sobretudo uma criadora de personagens, por isso lembrei-lhe uma
afirmação que fez, durante uns ensaios do espectáculo Juane em 1999: Os ensaios servem para criar as memórias das
personagens. Lembras-te? “Para mim, a construção da personagem não se faz
sozinha, isso se calhar já é um upgrade
dessa frase, a personagem faz-se com as pessoas com quem tu estás a trabalhar,
faz-se com o actor que está a contracenar contigo, com o encenador que te está
a dirigir, faz-se com o texto com quem te estás a relacionar, com os objectos
que te surgem à frente. A construção vai ser moldada por todos esses elementos.
Mas desses todos privilegio a relação com o actor ou actores com quem estás a
trabalhar. Acho que é desse dar e receber que as coisas ganham forma.” Então um monólogo, para ti, será uma coisa
difícil? “Sim, estão reduzidos os elementos de reacção, lembrando a
química, de onde nós viemos, mas existem sempre elementos para te relacionares,
tens a luz, tens o texto, tens o público, tens as memórias dos ensaios. Essa
memória da personagem são momentos dos ensaios que te marcam, e que depois no
espectáculo está lá gravado no teu corpo essa memória, que pode ser visual ou
de uma marcação. Mesmo numa situação isolada tens sempre alguém que te vai dar feedback de reacção, mas não me
entusiasmam os monólogos, não.”
A Química
Como
a Carla falou de química, lembrei-me da nossa professora Emília Paiva, que nos chamou à parte, num laboratório de química
para nos avisar de que nunca iríamos ser artistas, que isso era apenas um sonho
que nunca iria acontecer. Não resisti a fazer a pergunta: Alguma vez te
arrependeste? “Não e sim. Quando eu estava na formação de ciências e já tinha
projectado a minha vida para o resto dos meus dias e que achava que ia ser
assim, depois o teatro entrou na minha vida e tive de contar aos meus pais que
ia experimentar ir para Dança e depois para Teatro, decidi deixar de fechar
portas na minha vida. Eu acho que não tenho razões para estar arrependida de
nada, tenho é sempre a porta aberta para poder mudar a minha vida se precisar
ou se me apetecer.”
Serias sempre uma criadora de personagens,
não achas?
“Eu
sinto que comigo é tudo um bocadinho catártico, não é que me sirva do teatro
para fazer catarse das minhas frustrações ou dúvidas, mas de facto quando um
texto passa por mim há uma transformação qualquer, há uma acção-reacção, sou um
filtro.” Quer dizer que quando
interpretas um texto há sempre criação? “Sim. É como se juntasses dados
muito rapidamente, eu recebo isto e automaticamente isto leva-me a outra ideia,
a experimentar outra coisa, a abrir várias portas, é como se a cabeça estivesse
sempre a encontrar novas possibilidades para outras ideias, nisso sou
criadora.” Tens um método, algo que se
mantém? “Provavelmente o trabalho de casa sim, depende, mas tento sempre
fazer o mapa da personagem, de onde ela vem, para onde ela vai, o que é que
está a fazer em cada cena. Tentar fazer uma mapa histórico, o espaço, o tempo,
e o emocional, onde é que, intuitivamente, posso prever que a personagem está
emocionalmente. Eu gosto muito do ritmo, pela ligação que tenho com a música.
Sabe-me bem ouvir os textos com variações de ritmo, como uma partitura. A noção
de ritmo uso sempre. A noção dos opostos, de conflito, se um personagem é mais lento
o outro é mais rápido, ou um ser mais frágil e o outro ser mais forte. Mas isto
é o racional, o emocional surge nos ensaios na relação com os outros. “ Queres saber quem és, para saberes como
responder. “ Eu nos ensaios, também aprendi que ir com as ideias demasiado
feitas podes depois defrontar-te com uma direcção tão oposta ao que tinhas
pensado, que é muito difícil sair de uma posição tão sustentada e tão forte. Eu
levanto hipóteses, caminhos, mas não fecho nada. Trabalho muito através da
disponibilidade, gosto de estar disponível, de ter coisas para trabalhar.” Já alguma vez disseste não a uma direcção
artística? “Já. Não terei respondido dessa forma, mas sim. Não me senti
respeitada naquele momento, e perante isso apresentei uma alternativa
negociada.
Respostas rápidas
Comecei
por uma fácil: Como é que é a personagem
da Carla a dar entrevistas? “Sinto que estou sempre um bocado a rir, parece
que tenho sempre uma necessidade de provocar empatia, de transmitir sempre uma
imagem simpática, bem disposta, se calhar é a cena da contracena…” A personagem da Carla a dar aulas a
velhotes? “São como meus filhos, sou um bocadinho maternal e ao mesmo tempo
neta deles. Tanto os recebo no colo como eles a mim, é uma personagem muito
emocional, essa.” A personagem da Carla
a fazer locuções? (Acelerou o ritmo.)
“Há uma adrenalina que eu gosto muito, divirto-me muito, é uma personagem
muito divertida, mexo-me imenso. O ritmo, ai então, tem uma função muito
importante, tem de soar redondinho, esse rigor de estar na mouche.” A personagem da Carla a conduzir? “Pode
ser uma forma de arrefecer para chegar a casa depois de acabar um trabalho,
gosto de andar depressa mas também gosto de andar devagar. Digo asneiras, mas
sempre de vidros fechados. Canto, choro como em lado nenhum posso chorar,
aquele chorar de bebé mesmo, faço no carro.” A Carla a dirigir actores? (Aqui a Carla fez uma inversão de ritmo)
“É uma personagem com muito respeito e muito séria. Eles são muitos, e são
bons, e são mais velhos que eu muitas vezes, e tenho imenso respeito. Não sei
se num ano consegui apreender toda a mecânica, ou toda a função de direcção de
actores mas gostava de repetir.” A Carla
mãe? (Outra mudança de ritmo agora com um sorriso rasgado. )“É muito
sonhadora, a querer ser criança, poder descer a esse mundo e depois ao mesmo
tempo ter que ser séria e mandar fazer as coisas, ou chamar à atenção quando é
necessário. A imagem que mais me toca no futuro é começar a cumprimentá-lo ao
contrário, quando ele começar a ser mais alto do que eu.”
Pessoas que marcaram o teu percurso?
“Posso
começar por ti, mas assim as primeiras o Miguel
Seabra, até porque foi o Ki Fatxiamu
Noi Kui* que desencadeou tudo isto, o João
Mota. São as duas mais fortes. Gosto do Pedro
Almodóvar. Gosto muito mais de ver teatro do que cinema, fico deslumbrada
por ver trabalhos de colegas bem feitos, mas não consigo escolher. Quis ser
como a Luísa Cruz ao início, mas
ficamos com medo de criar esses pedestais à nossa volta.”
O que é gostavas de fazer
Em televisão? “Gostava de experimentar
algo relacionado com polícias, a experiência do Quarta Divisão foi muito forte
e gostava de fazer uma personagem policial, de acção, fora da minha zona de
conforto. Gostava de criar programas para o público infantil. Em cinema? “Alguma coisa histórica,
achava que era giro, temos uma história tão rica. Por exemplo a vida dos
exploradores em África.” Em teatro?
“Eu gosto muito do Dinis e Isabel” Encenar?
“Não me sinto preparada ainda.” As tuas personagens
têm sempre um lado mais ingénuo, a personagem do Quarta Divisão, a Helena
Tavares, marcou-te muito não foi? “Lembro-me de um dos exercícios que fiz
com a minha PT, que me permitiu trabalhar a agressividade, que naturalmente não
me sai com muita facilidade, retirar o
ar doce, a empatia, colocar-me com alguma distância, numa posição de liderança,
que me é muito difícil, e a personagem exigiu-me muito disso.”
Pergunta para o próximo
Lancei
o desafio do costume, uma pergunta para um próximo artista: “Achas importante
regulamentar o trabalho artístico em Portugal?”
Onde podem ver a Carla Chambel?
De
segunda a sexta, a fazer de Marina em
Bem-vindos a Beirais na RTP1, também
a podem escutar nas várias locuções que faz, dentro do carro a chorar como um
bebé, e pela Expo a andar de
bicicleta com os seus dois amores, e também meus grandes amigos, o Miguel e o
João.
Observação:
*Ki Fatxiamu Noi Kui, foi o primeiro
espectáculo do Teatro Meridional. Eu e a Carla assistimos com o nosso professor
de português do 10º ano, na sala estúdio do Teatro Municipal de São Luíz, em
1992. No final desse espectáculo falámos com o Miguel Seabra que nos mostrou uma forma tão amorosa de pensar e
fazer teatro, que mudou a nossa vida para sempre. O que fazemos nós aqui? É curioso,
mas foi o título que mudou a nossa vida.
Agradecimentos ao Café Vertigo, e ao meu amigo Luís Coelho (Outro amigo
da Escola Secundária da Falagueira.) que me tem deixado fazer do seu espaço a
minha segunda casa J
Esta entrevista foi realizada no dia 1 de Maio de 2014, foto de Carlos Ramos. Entrevista publicada também no Blog Sobre as Cenas.
Esta entrevista foi realizada no dia 1 de Maio de 2014, foto de Carlos Ramos. Entrevista publicada também no Blog Sobre as Cenas.
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