Conversa com Melânia Gomes


“Eu fazia tudo à minha maneira”


Nasceu em Tomar, mas muito cedo foi para Viana do Castelo, onde com a mãe e duas tias começou a fazer personagens para chamar à atenção. Fosse na escola ou a ver televisão as ideias eram tantas que até fazia coisas na rua para ganhar umas pesetas. Depois de ver um anúncio a um casting, veio para Lisboa e por cá ficou. É uma actriz que já fez revista, televisão, teatro e cinema e que traz sempre na mala do carro uma personagem chamada Silvina Godinho. Tem 29 anos e continua a fazer personagens que chamam à atenção.

Fábulas
A Melânia é conhecida das novelas e de outras produções teatrais de grande impacto, e isso fez-me pensar onde poderia estar com ela durante uma hora sem se criar logo uma fila de fãs a pedir autógrafos. Combinámos no Café Fábulas, e por ser dia de chuva, ou pela Melânia aparecer com o cabelo molhado e quase sem maquilhagem, estivemos sentados num sofá castanho sem ninguém nos incomodar a não ser o Belarmino (para quem não sabe, é o dono de espaço) a perguntar se precisávamos de alguma coisa, pelo menos 3 vezes ;-)

Estacionamento
Convém dizer já que a Melânia chegou esbaforida a pedir desculpa pelo pequeno atraso de 10 minutos, e a contar que achava que tinha estacionado num lugar de grávida. Não fiz, naturalmente, qualquer piada sobre isso. Até porque convém dizer que o namorado dela é um dos meus melhores amigos. Não te preocupes Mário, fui profissional do início ao fim, como poderás ler a seguir. Abri o meu caderninho azul, que guardo sempre comigo, e falámos sobre coisas antes de colocar a máquina tecnológica a gravar a nossa conversa. Acho mesmo que deveria ser obrigatória uma conversa inicial antes de qualquer entrevista ou conversa. Concordo com a cena da espontaneidade mas isso das perguntas toma lá dá cá é para outros sítios mais sérios, e no mínimo entender a Melânia, como artista, era fundamental. Pediu um chá de gengibre e ficou muito mais à vontade. Era hora de começar a gravar.

Quem é que tu admiras, e porquê?
Carreguei no botão, e comecei pela pergunta que a Mariana Tengner Barros tinha deixado, sem saber eu ou ela que seria feita à Melânia, que respondeu de imediato com um sorriso nos lábios: Admiro a minha mãe, as minhas tias, os meus avós, a minha família, que é uma família de lutadores, que passou pela guerra e veio sem nada, que teve que começar do zero num país que na altura não tratava muito bem as pessoas que vinham de África. Admiro-os por terem sempre lutado e nunca baixarem os braços e de darem a volta. A Melânia disse isto tudo de uma forma tão ternurenta e agradecida que não fui capaz de dizer nada.

One woman show
Mas tinha de continuar a dizer coisas, eu e ela, que me contou que na escola gostava de dançar e de cantar em cima das mesas a pedir aplausos aos colegas. Se não aplaudissem roubava-lhes a comida ou obrigava-os a trocarem as fatias de queijo pelas fatias de marmelada. As educadoras achavam graça, a mãe da Melânia é que não, que muitas vezes foi chamada à escola para ver os espectáculos da filha.

Cassetes do Raul Solnado
A Melânia decorava as cassetes e depois repetia para todos ouvirem lá em casa. Cantava na rua e os turistas espanhóis davam-lhe dinheiro. Guardava pesetas num porquinho para quando ia comprar doces a Espanha. Apesar da tentativa da mãe para que tocasse piano, a desilusão de ter de tocar flauta antes, impediu-a de continuar. Tentou então inscrevê-la na ginástica, mas também não funcionou, a Melânia acabava sempre por ter vontade de fazer outras coisas mais criativas e menos controladas. A mãe acabou por inscrevê-la no grupo de teatro amador O Trapo, de Lucilo Valdez e Dantas Lima, com seis anos, onde foi tratada como todos os outros apesar de ser uma criança. Isso sim agradou à Melânia, nessa altura foi à Madeira fazer a sua primeira tournée, era o Anjo, consciência do Velho da Horta de Gil Vicente.

Os programas da Marina
Via todos, mas começou a decorar e a fazer teatralizações, com o que via no Marina Dona Revista. Via na terça, decorava na quarta e na quinta começava a apresentar. Primeiro em família e depois na escola, onde organizava tudo o que podia, desde desfiles de moda, a poesia para o jornal da escola ou para ler nas festas de natal da cadeia de Viana do Castelo, onde a mãe então trabalhava.

Sociologia
Como passava horas a representar e nunca se cansava, a partir dos quinze anos e já no secundário começou a pensar nisso de ser actriz e o convívio com a Maria José Miranda do Teatro do Noroeste, com quem fez um curso de teatro, marcou a decisão. Foi aí que ouviu que se não seguisse teatro ia-se perder uma grande actriz. Mas não segue teatro. Por causa dos pais e do namorado na altura, segue para Braga e para Sociologia. A tal história de primeiro tirar um curso para ter uma vida mais segura, também aconteceu à Melânia. Ainda passou bem pela fase do convívio das praxes, mas quando começou a rotina do curso, de estudar e ir a aulas, percebeu que não era aquilo que a faria feliz e voltou para Viana.

O Casting
No dia a seguir, numa série de coincidências viu um casting para uma revista de um grupo de teatro amador em Lisboa, a Academia de Santo Amaro. Ligou numa terça e veio fazer o casting na quinta. (Aqui reparei que ou há uma grande coincidência ou tudo o que é importante na vida da Melânia começa numa terça e explode numa quinta. Vou telefonar ao Mário, para verificar isso ;-) A mãe sentiu que a aquilo ia mesmo acontecer e ligou para o Paulo Vasco (Encenador da peça.) para confirmar bem o que era. É claro que o casting começou com a pergunta: quem é a menina de Viana do Castelo? Como sentiu que havia ali uma tentativa de especial atenção, ela não disse nada. Tinha de ler um texto e reparou que os que leram antes eram chamados à atenção se tinham tom ou não, quando chegou a sua vez, ouviu: Ah, ela tem tom. Teve o feeling que aquilo ia correr bem, e correu, foram todos escolhidos, mesmo os que não tinham tom.

A Revista
Queres Fiado Toma, foi a primeira em 2003, onde fazia várias personagens, começou por dançar mais do que representar, passou por algumas cortinadas (Número de revista em frente à cortina.), e no final já fazia números como primeira figura e os quadros de rua. Sem saber, a Melânia já se andava a preparar desde miúda com a Marina Mota, que via na televisão e repetia todas as semanas em casa. A linguagem, os tempos, as coreografias e o lado visual já lhe era familiar. A Melânia andava a ensaiar para isto à anos.

Parecendo de propósito, o Teatro Maria Vitória abre casting pouco tempo depois, e já não entra em O Crime da Aldeia Velha que estava a preparar na Academia, por vontade do Paulo Vasco que a motiva a ir para o profissional, o teatro precisa de sangue novo disse-lhe. Foi ao casting e ficou. Parecendo ainda mais de propósito, o Camilo de Oliveira foi ver esse espectáculo e convidou-a para entrar no seu novo programa de televisão, Camilo em Sarilhos.

No espaço de meses a Melânia chegou de longe, passou por um grupo amador, por outro profissional e logo a seguir para a televisão. Quem não a conhece pensará que é coincidência, mas não foi, a Melânia é mesmo o tal sangue novo que o teatro de revista precisava.

A Dona Marina Mota
O mestre de carpintaria Zé Martins sabia dessa admiração e levou-a ao bar Pó de Palco, em Cascais onde finalmente conhece a Marina. Atrás de um balcão com um lenço na cabeça a servir bebidas, finalmente a Marina disse: Olá Melânia. A segunda vez foi num dia de estreia em que ela a visitou nos bastidores, o que a fez ficar a chorar o intervalo todo antes do segundo acto. Trabalhar com ela foi a realização de um sonho, o que a obrigou a ter mesmo que inventar outros sonhos. A Marina é a referência, a diva, partilha tudo do que sabe e puxa, sempre,  pelos mais novos, sendo ela o centro do espectáculo, puxa por todos. Destes encontros ficou-lhe um conselho: não aceites o facilitismo.

O caminho mais fácil
“Não optar pelo que é óbvio, mesmo que os textos sejam muito superficiais, puxar pela representação, não fazer só caricaturas, é isso que é melhor para ti e para o teatro de revista.”

Há sempre formas, apesar de já não haver censura, a revista sempre foi contra-poder, onde as opiniões de muitos refletem a opinião do povo. Caricaturar um assunto para que se possa pensar nisso, deve ser isso que um bom autor de revista deve fazer. Colocar os temas da actualidade em cima da mesa, ridicularizando, brincando mas não esquecendo o entretenimento da dança e da música.
“Cada vez consideram menos a revista como um género menor, cada vez mais se dá valor aos cómicos e ao valor do cómico, pela tradição, por ser nossa, como no fado, a revista será, mais tarde ou mais cedo, valorizada.”

Sendo eu de uma outra escola de pensamento, admito aqui, que o meu conhecimento sobre a Revista à Portuguesa, sempre me fez curiosidade. Seja pela forma apaixonada de como quem a faz, sempre fala, seja pela forma apaixonada como gerações a frequentaram nas suas plateias. Nisso a Melânia é uma porta entre dois mundos, há que dizê-lo.

Televisão
Depois de Camilo em Sarilhos, fez muitas sitcoms cómicas, nas novelas começou por fazer personagens mais sensuais, mas a Penelope, da novela Deixa Que Te Leve, foi o projeto que lhe deu mais prazer. Não se preocupa em só seguir papéis cómicos mas tenta que todas as personagens sejam marcantes, mas as cómicas são as que mais gosta de fazer.

Teatro
Com Joaquim Benite, no Amor de Dom Perlimplim com Belisa no seu jardim, fez a sua estreia fora da Revista. Depois logo a seguir entrou no Carteiro de Pablo Neruda, foi na altura certa para experimentar outras coisas e combater as suas inseguranças, e mostrar a si própria que era capaz de fazer outras coisas. “Mas sei que há uma conexão maior com personagens cómicas.”

Personagens
Nesta altura e depois de tantas enumerações, senti vontade de perceber como é que a artista Melânia Gomes trabalha, como pensa, imagina e prepara as suas personagens. “A melhor escola que tive foi ter construido muitas personagens com textos que tinham duas ou três frases. Passas a vida em cena e se não crias personagens é uma chatice. O encenador diz-te vais entrar do início ao fim por isso faz personagens, se não és sempre tu e é uma seca. Tens de ter a sensibilidade de saber o que é o número, onde se passa, porque muitas das vezes só estás a fazer a pergunta porque o rabelista tem de seguir a história.” Aqui percebi que o contexto fazia-a inventar as personagens.

“Gosto de fazer a biografia da personagem, o objectivo, aquilo que a move. A Penelope foi uma das que mais a motivou a descobrir o caminho.”

Silvina Godinho
Queria muito falar desta criatura, tomei o cuidado de lhe perguntar antes se era segredo, disse-me que já não, e que podíamos falar à vontade deste seu alter-ego. Co-criação com Alexandre Ferreira e Mário Redondo, (Ambos meus amigos dos tempos do Conservatório, que as coisas da deontologia profissional ainda me preocupam.) anda sempre com a Melânia para todo o lado desde 2009. Surgiu da vontade de fazer uma personagem mais velha, louca, homeless e visualmente muito diferente da própria Melânia. Inspirada nas suas tias, uma delas chama-se mesmo Silvina, que é uma tia muito despistada com muitas histórias próprias que permitem à personagem abordar temas como a solidão e a velhice. Esteve num monólogo no Teatro Estúdio Mário Viegas e no Opinião Pública da SIC, onde por vezes telefona incógnita, aliás foi aí que mudou de Silvina Coutinho para Silvina Godinho (Coisas de quem ouve nomes ao telefone, e os tem de escrever logo a seguir.) A Silvina vive de teorias da conspiração e diz que é presidente da república, e mesmo assim anda sempre na mala do meu carro.

“De igual a mim tem a loucura, e a vontade de dizer coisas que eu não posso dizer como actriz. Ela diz sempre o que quer dizer sem ter medo de chocar. A Silvina poderia ter sido um quadro de uma revista, mas tornou-se uma personagem tão pessoal, que só eu a poderia escrever. Tenho um carinho especial pela Silvina, não a tenho na minha bio, não a quero expor mas até já a levei ao Cinco para a Meia Noite. Tenho orgulho de a ter feito. Ela anda comigo para todo o lado mas não sei para onde a vou levar”

Mas que tipo de artista, afinal, é a Melânia Gomes?
“Eu nasci com uma função de rir e divertir as pessoas, de as fazer pensar, olhar as coisas com um olhar positivo, desde pequena que eu gosto, que vejam o meu trabalho para se divertirem. O riso ajuda as pessoas.”

Lancei-lhe um desafio
Para fechar a nossa conversa pedi-lhe que deixa-se uma pergunta para o próximo artista com quem vou conversar, mal sabia ela, que neste caso já eu sabia quem seria. Pensou um bocado e respondeu com uma pergunta: Já comprometeste os teus princípios para conseguires um trabalho, e que lição tiraste disso?

Onde podem ver a Melânia Gomes?
Estreia dia 12 de Março no Teatro da Trindade, a comédia "Boeing Boeing", encenada pelo Claudio Hochman. A sua personagem é Julieta, hospedeira de bordo italiana e uma das noivas de Bernardo (Luís Esparteiro). Uma comédia esteve 19 anos em cena, em vários palcos do mundo.

Podem também ver o filme "7 Pecados Rurais" nos cinemas e claro segui-la no seu facebook profissional, instagram e site. Ah, e sigam a Silvina Godinho, no facebook e no canal de youtube dela.

Site:
Facebook:  
Facebook Silvina Godinho:
Canal Youtube:

Autógrafos
Já com o aparelho tecnológico desligado fomos continuando a falar pelo corredor até à rua, e não sei se foi por ter parado de chover, ou pela Melânia ter passado pela casa de banho, onde imagino que terá retocado a maquilhagem, apareceu logo um jovem a perguntar: pode me dar um autógrafo? A Melânia, muito simpática, deve ser difícil às vezes, mas nesta vez posso comprovar que foi mesmo, autografou a folha e despediu-se de mim com a esperança de não se ter esquecido de dizer alguma coisa.

Passado 10 minutos recebi um SMS a dizer: Afinal não era um lugar de grávida J

Não fiz, nem farei piadas sobre isto, certo Mário?



0 comentários:

Enviar um comentário

 

escritor de personagens

Pedro Saavedra é um sonhaador com dois aa. É um artista que escreve, representa, pensa e programa como alguém que gosta (sempre) de acordar todos os dias. Formado pela ESTC, já foi actor, escritor, professor, encenador e programador. Foi professor de expressão dramática durante 5 anos. Foi director artístico, de uma companhia de teatro na cidade da amadora, durante 8 anos. E foi programador, de uma estação de metro no centro de Lisboa durante um ano. Actor em novelas, séries e filmes, também faz locuções, mas só ficou famoso uma vez por dizer na televisão: Este canal acaba de ser comprado pelo Sr.Nuno Cabral de Montalegre e a partir deste momento só passará folclore transmontano.

aprendeu com

Eusébio Paulino, Paulo Barcelos, João Mota, Glicínia Quartim, Glória de Matos, Anna Paula, Rui Mendes, Duarte Ivo Cruz, Paulo Morais, Eugénia Vasques, Valentim Lemos, Kot-Kotecki, Alexandre de Sousa, Águeda Sena, Natália de Matos, José Pedro Caiado, Fernanda Lapa, Filipe Crawford, Carlos J. Pessoa, Armando Nascimento Rosa, Abel Neves, Luca Aprea, Maria João Serrão, José Peixoto, Eimuntas Necrosius e Nuno Carinhas.

trabalhou com

Carla Chambel, Joaquim Benite, António Assunção, Luís Vicente, Teresa Gafeira, João Mota, Álvaro Correia, Carlos Paulo, Pedro Alvarez-Ossorio, Vlado Repnik, Robert Klancnik, Igor Stromajer, Joana Brandão, Joana Seixas, Margarida Cardeal, Pedro Matos, Gonçalo Portela, Vladimiro Guerreiro, Ana Cloe, Pedro Gil, Susana Arrais, Ana Costa, Ricardo Mendes, Alberto Quaresma, Miguel Damião, Rui Unas, Inês Castelo Branco, Dânia Neto, Sandra Faleiro, Ian Veloza, António Cordeiro, Tiago Guedes, Juvenal Garcês, Pedro Luzindro, Ricardo Cruz, Luciano Burgos, Martin Joab, Paulo Patraquim, Cristina Basílio, Alexandra Sargento, Ana Guiomar, Rogério Jacques, Frederico Amaral, Adriana Moniz, Lucília Raimundo, Tomé Quirino, José Pais, Rui Melo, Rui de Sá, Henrique Câmara Pina, Francisco Baptista, Márcia Leal, Toninho Neto, Joana Cruz, Susana Romana, Fernando Alvim, Rui Miguel Pereira, Miguel Valverde, Joaquim Leitão, Ema Cerveira, Miguel Bica e Tiago Sigorelho, entre outros.