Tirou-me
uma fotografia e eu apaixonei-me. Sabem aquelas paixões platónicas que não
querem levar ninguém para a cama? É mesmo isso. A Ana tem qualquer coisa que
quando fotografa também retrata, e aquela primeira foto que me fez ganhou-me fé
na sua emoção de ver com olhos de ver as coisas que interessam. Mas chega de
lamechices, que eu também consigo ser pragmático e obtuso. Marquei com ela
perto do local onde tem um dos seus múltiplos trabalhos e quem nem casal num
date pseudo-hipster, lançámo-nos numa conversa com vista para a ponte Vasco da
Gama. Juntos com um i-phone entre nós, a Ana falou de si e do que realmente
interessa, os porquês dos afazeres das coisas foram o tema dividido em nove
ofícios. Ps: sou feliz e casado, não se assustem.
Mas quem é esta
tipa?
A Ana Morais é uma mulher dos sete
ofícios, ou nove ou mais se pesquisarem bem. Tem 29 anos e nasceu em Mirandela,
depois de estudar por Coimbra e Berlim, acabou por vir parar a Lisboa onde entre
outras coisas trabalha num banco de investimento como especialista em mercados
financeiros. Tem um site www.mulherdos7oficios.com
onde retrata o que vai vendo do mundo que a rodeia. Adora desafios e geralmente
escolhe os mais díficeis para aceitar.
Uma pergunta da Rita Gomes aka Wasted Rita
Parecendo
já uma tradição, gosto de lançar perguntas entre convidados e muitas vezes as
perguntas acertam na mouche, neste caso a pergunta que ficou para a Ana foi: Se pudesses mudar a pessoa à tua frente,
que artista escolherias para conversar? “Se calhar ia para um dos
fotógrafos de referência portuguesa e do fotojornalismo, que até tenho seguido
muito, que é o Paulo Pimenta. É um fotógrafo do Público, que em termos de
fotojornalismo português é uma das minhas referências. Para conversar sobre o
background que ele tem em fotojornalismo. Escolho-o pelo tema e pelo tipo de
conversa que poderia ter.” Tu também
entrevistas, e já te aconteceu teres desilusões com artistas que entrevistaste,
que imaginavas muito interessantes?
“ Ainda não. Mas isso também pode ter a ver com as dificuldades de
expressão de cada um, podem ser bons tecnicamente no que fazem mas a expressarem-se,
nem por isso. Na generalidade todos os artistas sabem expressar-se sobre a sua
própria arte. Porque quando sabes o que estás a fazer, ninguém sabe melhor
sobre isso do que tu próprio. Poderás é ter alguns problemas de expressão (já
dizia a música). Mas na generalidade todos os artistas sabem falar do que
fazem.” Achas, então, uma treta os
artistas que não conseguem explicar o que fazem? “Acho um bocadinho, mas
isso é porque eu sou muito ligada a conceitos. Mesmo em termos de fotografia,
se eu não tiver um conceito para o que quero fazer, aquilo fica perdido “na
maionese” e fica tudo muito disperso e eu perco-me naquilo.” E achas que há diferença entre tema e
conceito? “Sim. O tema é uma parte demasiado abrangente, o conceito é
direccionado a um tema. O que vais retirar desse tema, o que é que vais
explicar desse tema.”
A Anita é mirandelense
Nascida
em Mirandela é-se mirandelense e não mirandês, designação relativa aos habitantes
de Miranda do Douro. Explicações feitas, perguntei à Ana se foi sempre assim a
fazer várias coisas ao mesmo tempo. Em
pequena, também tinhas bichos carpinteiros? “Eu sempre me meti em muitas
coisas, a minha mãe estava sempre a dizer que eu fazia demasiadas coisas. Na
altura, em Mirandela, era tudo mais restrito, não havia tantas oportunidades,
eu dirigia-me mais para o desporto. Torneios de futebol, hóquei em patins,
atletismo, mas não continuei por falta de tempo. Eu tenho necessidade de
explorar os meus limites e de entender até que ponto eu posso aprender as
coisas e desafiar-me, e só consigo fazer isso quando as faço de facto. Aí
percebo o que gosto e quero fazer. Sempre fui uma indecisa, muito curiosa e
sempre muito espalhada entre coisas. Isso notava-se quando me perguntavam o que
queria ser quando fosse grande, porque a minha resposta foi sempre mudando, até
chegar ao fim do secundário e ao momento crucial de escolher o curso, apesar da
grande dúvida que continuava em mim. Pensei em ser advogada mas depois percebi
que tinha de estudar livros gigantes e decora-los, e isso para mim não dá, eu
gosto de compreender, de interpretar. Como gostava muito de línguas e tinha
alemão há já algum tempo e inglês desde sempre… aprendia bem e rápido, pensei
que o caminho comunicativo das línguas era o certo. Decidi ir para alemão, que
não sabia tanto e era de difícil acesso, se é para aprender alguma coisa vou
aprender uma que me desafie. Fui para Coimbra, português e alemão, línguas e
literaturas modernas, porque uma das saídas na vertente de investigação era
comunicação social e relações públicas. O que vai mais de encontro ao que mais
gosto de fazer agora.” Tantas escolhas,
mas de onde vem o nome anita dos sete ofícios? “Isso foram os meus amigos e
colegas de trabalho, que estavam sempre a dizer que eu era a mulher dos sete
ofícios, usavam muito essa expressão para brincar comigo, e eu acho que os
exageros dão sempre bons títulos. Então decidi intitular o blog que eu já
arrastava há algum tempo, com pouco conteúdo e sem grande estrutura, que não
sabia o que fazer com ele, com o nome mulher dos sete ofícios. Um blog que
fosse uma plataforma que reflectisse pessoas que são assim, não só o meu caso,
mas outros. Para mostrar que é muito usual, que não é invulgar pessoas que têm
sete ofícios com escolhas interessantíssimas, e eu queria demonstrar isso
mesmo.” Mas achas que é mais comum
agora, um sinal dos tempos, as pessoas terem múltiplos interesses? “Cada
vez mais, acho que é algo que está em crescimento. Para mim é positivo e sinal
que o comodismo não é geral. Sete ofícios é uma expressão com uma origem
de conotação negativa e tem várias
perspectivas, tu consegues fazer muita coisa mas não és bom em nenhuma, este é
o peso da expressão. A questão é se isso é verdade ou não.”
Os nove ofícios da
Anita
Ao
pensar na Ana e no seu alter-ego Anita, tive de me lembrar dos livros da Anita,
da transformação de mulher dos sete ofícios para anita dos sete ofícios, algo
recente na vida da Ana, e os livros em que a personagem Anita descobre partes
do mundo ou novos amigos ou até novas funções, era inevitável. Pus-me a
conta-los e escolhi nove ofícios que davam uma colecção de nove títulos de livros.
Livro 1 - Anita
serve às mesas
“Fui
empregada de mesa por vários motivos, coloco isso no meu currículo porque
revela a experiência de relacionamento com várias pessoas, relações públicas
diria. Primeiro comecei porque os meus pais tinham um café-restaurante e eu
ajudava-os, sempre que podia, depois porque quis ir estudar para Berlim em
Erasmus e se não existiam condições para isso, faço o que faço sempre, crio as
condições. Por isso, durante mais de um ano, em todas as minhas férias do curso
que estava a fazer em Coimbra, trabalhei num café em Mirandela para poder ir
para Berlim.” E como era? “Era abrir
o café às 6h da manhã, tinha um salão gigante para tratar das mesas, os meus
patrões no balcão e na cozinha, e foi uma experiência excelente, não tenho
vergonha nenhuma. Tive muito orgulho em ter feito isso, em ser nova e ter
tomado essa decisão e depois porque as pessoas tiveram muita receptividade,
porque achavam um piadão que uma universitária de Coimbra fosse para ali para a
terrinha servir às mesas. Os meus patrões tinham orgulho em dizer que tinham
uma universitária a servir às mesas.” Conta-nos
uma história sobre essa altura. “Tive uma com um senhor que já tinha vivido
na Alemanha há 40 anos atrás, que me perguntou para que cidade alemã eu queria
ir e eu respondi que ia para a capital. E ele perguntou, para Bonn, e eu
insisti que não, para Berlim. Mas ele insistiu, menina se vai para a capital
vai para Bonn, então você está a estudar alemão e não sabe qual é a capital da
Alemanha, você devia ter vergonha…”
Livro 2 – Anita
toca violino
“Tive
aulas de violino durante a faculdade, um ano e tal, porque sempre foi um
instrumento que me fascinou. Gostava de como ele soava mas nunca tive
oportunidade de ter aulas de violino. Quando me apanhei na universidade,
reparei que tinha uma escola de música perto da minha casa e eu, basicamente, “chorei”
muito um violino aos meus pais, porque gostava tanto de aprender um
instrumento, porque o meu irmão teve duas guitarras e eu nunca tinha tido
nenhum instrumento. Gostava do instrumento e quis aprender” E aprendeste? “Aprendi, aprendi duas
músicas. Com dezanove anos já não tens paciência, é um instrumento que precisa
de aprendizagem muito cedo e de muita prática, e eu com a universidade e os
desvarios da idade perdi-me ali um bocado e parei. Depois voltei a tentar outra
vez, já aqui em Lisboa, com mais algumas aulas, mas o problema de viver num
prédio e não poder tocar quatro horas seguidas sem alguém se queixar impediu-me
de continuar.”
Livro 3 – Anita
trabalha com crianças
“Fiz
várias actividades, mas a primeira experiência foi uma colónia de férias na
Biblioteca Municipal de Mirandela, em que cuidava de crianças na secção
infantil. Depois, como tive uma educação católica, estive como animadora no
grupo de jovens da igreja dos Salesianos, onde dava ATL’s de teatro e dança.” E os miúdos gostavam? “Sim, não é para
me gabar mas eu acho que sim. Ainda tenho fotos de duas peças de teatro que
fizemos, em que entre todos fizemos o cenário. Os temas eram escolhidos por
eles e entre aquilo que gostavam de fazer para os pais, que era a plateia das
apresentações. Uma foi sobre o Halloween, que eles queriam muito e a outra sobre o São João Bosco, padroeiro das
crianças. Na dança, como eles gostavam muito de R&B e Hip Hop, víamos
coreografias e depois escolhíamos passos para eles criarem a partir daí.” Não repetiste essa experiência com crianças?
“Não, mas gostava.
Livro 4 – Anita
fala alemão
“Falo,
quer dizer, falava alemão fluentemente, neste momento falo um alemão
adormecido. Quando estava em Berlim, falava fluentemente, de início começa
enferrujado mas depois de começar a ouvir falar alemão, volta outra vez. O
alemão é mais difícil porque nós não temos tanto acesso a essa língua como
temos do inglês, porque se tivéssemos, a nossa aptidão para a entender e falar era
mais fácil.” Não achas que é uma língua difícil
pela expressão? “Por isso é que toda a gente os rotula de frios, por essa
desconexão de expressão espontânea das emoções, mas eu não acho isso mau. Vivi
isso, e ao início custa um bocado, durante os primeiros meses eles
cumprimentam-te com um aperto de mão, mas quando tens um abraço sabes
definitivamente que é verdade.” Mas
sabes mais línguas? “Sim, o inglês acompanha-me desde cedo. O francês com
aulas na faculdade e agora aqui na empresa onde trabalho. O italiano, porque
fiz muitos amigos em Berlim e sempre que vou a Itália eles fazem questão de
falar comigo em italiano. O espanhol porque vivi com dois bascos em Berlim, e
em casa só se falava castelhano.”
Livro 5 – Anita
fotografa
“Primeiro
comecei a fotografar amadoramente em Berlim - sobre a experiência em Berlim, com
uma HP compacta. Fui tentando retratar a minha experiência em Berlim. Foi aí
que começou a verdadeira paixão pela fotografia, vendo o que era capaz de fazer com uma
pequena caixinha.” Mas também foste
aprender? “Sim, fui fazendo o que o meu bolso podia pagar, muitos workshops
técnicos, porque a parte conceptual fui tentando e falhando com a prática.
Tirei a primeira parte do curso do site Olhares, e aprendi técnicas de estudio
com primeiro fotógrafo de quem fui assistente, Paulo Costa. O Paulo também faz
muito foto-reportagem e sempre o acompanhei, foi uma fase excelente em que
dormi pouco, mas aprendi muito, o trabalho durante o dia continuava e até
cheguei a tirar férias para ter mais tempo de aprendizagem.
Livro 6 – Anita
canta numa banda
“Na
realidade foram duas bandas de música tradicional, uma era os Oxalá
e a outra os TrauTear.
Novas versões de clássicos tradicionais, mas também com algumas letras originais,
que normalmente era eu que escrevia apesar de os outros elementos também terem
a autoria de algumas letras, mas isso sobretudo nos Oxalá, que foram criados de
raiz.” Oxalá tem alguma coisa a ver com
os Madredeus?” Há quem diga que a minha voz é parecida à da Teresa, mas eu
acho que nem chego aos calcanhares dela.” Durou
muito tempo? “Dois ou três anos, mas depois parei porque houve uma
alteração de objectivos e acabei por deixar um bocado o tradicional. Nos
Trautear íamos buscar letras da música tradicional portuguesa e fazíamos
versões com influências celta, nos Oxalá tínhamos várias influências que podiam
ir do Jazz à Bossa Nova, do tradicional português ao céltico, e eram a
expressão dos próprios elementos do grupo.”
Livro 7 – Anita tem um blog
“Eu
li uma frase há pouco tempo, não sei quem é o autor que dizia: Estar apaixonado
é piroso mas estar desapaixonado é ainda mais. (referência malévola da Ana ao
editorial que escrevi para a revista gerador#1) A minha vida é um bocado assim
e transporto isso para a minha escrita. Eu não consigo desconectar
completamente aquilo que eu vivo, daquilo que eu escrevo, mas não é apenas o
que eu vivo, também reflecte o que eu aprendo dos outros – as aprendizagens,
aquilo que eu vejo os outros passarem, e o comportamento social padrão, junto-lhe um pouco de ficção, faço um
shake shake et voilà!” Mas a história aparece primeiro em imagem
ou em palavra? “Depende. Umas vezes uma, outras outra. Mas eu tenho
necessidade de pegar numa caneta e num papel e escrever, um hábito de sempre, e
escrevo sem pensar, sem preocupação gramatical, simplesmente escrevo e depois é
que faço revisão. Por outro lado uso muito o sonho, muitas analogias. Aquele
blog é um livro que eu tenho na gaveta e é um desejo que tenho há muito tempo,
é um livro com palavras e imagens e até já tem título.” Podes dizer qual é? “Posso: O livro que nunca acabei de escrever,
para ser mesmo irónico.”
Livro 8 – Anita organiza eventos
“Eventos
culturais essencialmente. Quando vim para Lisboa e fui trabalhar nesta empresa,
que não é a área que desejei para mim, sempre disse que nunca teria um emprego
sentada atrás de uma secretária, e comecei a ver se haveria algo dentro da empresa que pudesse enriquecesse
o meu currículo na area que sinto ter vocação. Então surgiu a oportunidade de
criar uma associação direccionada aos colaboradores, para organizar eventos
culturais ou desportivos, desde festas de carnaval, idas ao teatro ou festas na
praia. Fui presidente durante dois anos e levantei aquilo do zero, a liderar uma
equipa de dezassete pessoas, com uma aceitação reticente no início, mas no segundo
ano acima do que estávamos à espera. Entretanto decidi deixar os eventos porque
tinha outros objectivos em mente, porque aquilo era um projecto de
colaboradores para colaboradores e que devia ser experenciado por toda a gente.
Agora só organizo eventos relacionados com o meu blog.”
Livro 9 – Anita internacional clearing and
settlement market specialist na BNP Paribas Securities Services
“É
um cargo muito específico dentro da área financeira. Posso explicar, mas é
complicado para quem não conhece a area. Para simplificar, posso-te dizer
assim: Cada cliente tem um portfólio de títulos, aquilo em que investe, que por
consequinte tem um gestor desse portfólio (tipo um gestor de conta num banco),
depois tens os representantes dos mercados de cada país em que cliente quer
investir. O meu departamento está entre esses dois, o gestor de conta e os
representantes nos mercados financeiros, e o que eu faço é ser uma especialista
de mercado que garante que cada investimento, cada transacção, está dentro das
normas e regulamentações do país ou mercado onde ele está a investir. Nós
aconselhamos os gestores de conta a gerir os investimentos num determinado
Mercado - têm de seguir estas regras e
estes procedimentos. No fundo, nós somos os facilitadores da liquidez.” E como é que chegaste aqui? “Eu falo
alemão e na altura eles estavam à procura de alguém para o departamento de
alemão, escolheram uma pessoa que era mesmo alemã e eu acabei por ficar na lista
de espera. Depois chamaram-me para este departamento há cinco anos e por lá
fiquei, onde me especializei em mercados financeiros, com formações da própria
empresa. Eles precisavam de alguém que aprendesse rápido, que falasse
fluentemente línguas e que tivesse facilidade em lidar com pessoas.”
Duas perguntas rápidas:
És tímida? “Sou, mas disfarço. Foi um
mecanismo de defesa que fui desenvolvendo ao longo dos anos, para me permitir
fazer estas coisas todas. Muitas vezes me fiquei, pela timidez, e não falava
por ser tímida, e achei que devia mudar isso.
Gostas de estranhos? “Acho-lhes piada,
tem a sua curiosidade. Sou muito observadora mas também por vezes sou muito
distraída, passar por pessoas que conheço e não reparar é normal em mim, mas há
momentos em que gosto de me sentar e observar. Observo atraída por alguma
peculiaridade que me chame à atenção.
Por onde anda a Ana…
“Fábrica
do Braço de Prata é um sítio onde vou com mais regularidade e para fotografar é
mais na Lx Factory.”
Deixa-me ai uma
pergunta para a próxima conversa…
O que é a identidade artística?
Esta entrevista foi realizada num banco de
jardim na marginal do Parque das Nações, a 21 de Outubro de 2014. Foto de Carlos
DiQuercia
Publicado na Umbigo 51
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